sexta-feira

Carta de um turco e seu amigo Bababec * Voltaire

Quando me achava na cidade de Benarés, à margem do Ganges, antiga pátria dos brâmanes, procurava instruir-me. Compreendia passavelmente o hindu; escutava muito e observava tudo. Parava em casa de meu correspondente Omri, o homem mais digno que já conheci na vida. Era ele da religião dos brâmanes; quanto a mim, tenho a honra de ser muçulmano; mas nunca trocamos uma palavra mais alta a respeito de Maomé e de Brama. Fazíamos as abluções cada qual para o seu lado; bebíamos da mesma limonada, comíamos do mesmo arroz, como irmãos.

Fomos um dia juntos ao pagode de Gavani. Vimos ali vários bandos de faquires. Uns eram janguis, isto é, faquires contemplativos; e os outros eram discípulos dos antigos ginossofistas, que levavam uma vida ativa. Possuem, como é sabido; uma língua erudita, que é a dos mais antigos brâmanes, e, nessa língua, um livro chamado os Vedas. É certamente o mais antigo livro de toda a Ásia, sem excetuar o Zend Avesta.

Passei por um faquir que lia esse livro.

— Ah! desgraçado infiel! – exclamou ele. – Tu me fizeste perder o número das vogais que eu estava contando; e por isso a minha alma vai passar para o corpo de uma lebre, em vez de ir para o de um papagaio, como eu tinha motivos de crer.

Dei-lhe uma rúpia para consolá-lo. Dali a alguns passos, aconteceu-me a desgraça de espirrar, e o ruído que fiz despertou um faquir que se achava em êxtase.

— Onde estou? – disse ele. – Que horrível queda! Não vejo mais a ponta do nariz; a luz celeste dissipou-se. 

— Se sou o causante – disse-lhe eu – de que afinal enxergues além da ponta do nariz, eis uma rúpia para reparar o mal. Retoma a tua luz celeste.

Depois de assim contornar discretamente a situação, fui ter com os ginossofistas: vários deles me trouxeram uns preguinhos muito bonitos, para os fincar em meus braços e coxas, em honra de Brama. Comprei-lhes os pregos, com os quais mandei pregar meus tapetes. Outros dançavam sobre as mãos; outros na corda bamba; outros andavam num pé só. Havia uns que carregavam correntes, outros uma sela, outros que conservavam a cabeça dentro de uma caixa: de resto, a melhor gente do mundo.

Meu amigo Omri levou-me à cela de um dos mais famosos; chamava-se Bababec: estava nu como um macaco e trazia ao pescoço uma grossa cadeia que pesava mais de sessenta libras. Achava-se sentado em um banco de madeira, lindamente guarnecido de pregos que lhe penetravam nas nádegas, e dir-se-ia que estava num leito de cetim. Muitas mulheres vinham consultá-lo; era o oráculo das famílias; e pode-se dizer que gozava de grande reputação. Fui testemunha da longa conversa que Omri teve com ele.

— Acreditas, meu pai – perguntou-lhe Omri, – que, após haver passado pela prova das sete metempsicoses, possa eu chegar à morada de Brama?

— Isto é conforme – disse o faquir. – Como vives?

— Trato – disse Omri – de ser bom cidadão, bom esposo, bom pai, bom amigo. Empresto dinheiro sem juros aos ricos e dou aos pobres. Incentivo a paz entre meus vizinhos.

— Não metes algumas vezes pregos no ânus?

— Nunca, reverendo.

— Sinto muito: dessa maneira, só irás para o décimo-nono céu; e é uma pena.  

— Qual! Está certo. Sinto-me muito contente com a minha parte. Que me importa o décimo-nono ou o vigésimo, contanto que eu cumpra o dever na minha peregrinação, e seja bem recebido na última morada. Não será suficiente ser um homem direito neste país e depois um homem venturoso no país de Brama? Para que céu pretendes ir então, com os teus pregos e as tuas correntes?

— Para o trigésimo-quinto – disse Bababec.

— És muito engraçado – replicou Omri – com isso de quereres ficar alojado acima de mim: talvez não seja mais que um sinal de excessiva ambição. Se condenas aqueles que buscam honrarias nesta vida, por que então ambicionas honrarias tão grandes na outra? E de resto, por que motivo pretendes ser mais bem tratado do que eu? Fica sabendo que dou em esmolas, em dez dias, mais do que te custam em dez anos todos os pregos que fincas no traseiro. A Brama, pouco se lhe dá que passes o dia nu, com uma corrente ao pescoço. Belo serviço prestas assim à pátria. Considero cem vezes mais a um homem que semeia legumes ou planta árvores do que todos os teus camaradas que olham para a ponta do nariz ou carregam uma sela, por excesso de nobreza d'alma. Depois de assim falar, Omri se abrandou, mostrou-se gentil, acarinhou-o, persuadindo-o enfim a que deixasse os pregos e as correntes, e fosse viver uma vida às direitas, na sua companhia.

Tiraram-lhe o cascão, aspergiram-no de perfumes, vestiram-no decentemente.

Viveu quinze dias muito sensatamente, e confessou que era mil vezes mais feliz do que antes.

Mas desacreditava-se, entre o povo e as mulheres, não vinham mais consultá-lo. Ele deixou Omri e voltou a seus pregos para ter consideração.

Voltaire

Confuso * Luis Fernando Veríssimo


O Consumidor acordou confuso. Saíam torradas do seu rádio-despertador. De onde saía então - quis descobrir - uma voz do locutor? Saía do fogão elétrico, na cozinha, onde a empregada, apavorada, recuara até a parede e, sem querer, ligara o interruptor da luz, fazendo funcionar o gravador na sala. O Consumidor confuso sacudiu a cabeça, desligou o fogão e o interruptor, saiu da cozinha, entrou no banheiro e ligou seu barbeador elétrico. Nada aconteceu. Investigou e descobriu que a sua Mulher, na cama, é que estava ligada e zunia como um barbeador. Abriu uma torneira do banheiro para lavar o sono do rosto. Talvez aquilo tudo fosse só o resto de um pesadelo. Pela torneira jorrou um café instantâneo.

Confuso, o Consumidor escovou os dentes com o novo desodorante e sentou na tampa da privada - fazendo soar a campainha da porta - para pensar. Acendeu um batom Roxo Purple, nova sensação, da Mulher. O que estaria acontecendo? Resolveu telefonar para o Amigo. Saiu do banheiro e foi para a sala.

Quando girou o disco do telefone a televisão a cores começou a funcionar. Pensou com rapidez. Foi até o televisor e, no selecionador de canais, discou o número do amigo. Saiu laranjada do telefone. Apagou o batom num cinzeiro e voltou para o quarto. A Mulher acabava de acordar e, sonolenta, caminhava na direção do banheiro. Viu a Mulher fechar a porta do banheiro e dali a pouco ouviu a campainha da porta tocar de novo. Esperou. 
 
Quando a mulher abriu a porta do banheiro e, confusa, lhe disse, "Querido..." ele antecipou:

- Já sei. Saiu café da torneira da pia.

- Não. Liguei o chuveiro e uma voz disse "Alô?"

Era o Amigo.

- Deixe que eu falo com ele.

Foi até o chuveiro falar com o Amigo. Contou tudo que estava acontecendo. O Amigo disse que na sua casa era a mesma coisa, saía música do condicionador de ar e a televisão corria atrás das crianças dizendo bandalheira; era o fim do mundo.

Foi quando o Consumidor, confuso, viu que o novo secador de cabelo descia sozinho da sua prateleira, atravessava o chão do banheiro como um pequeno mas decidido tanque e saía pela porta. Disse para o Amigo que o chamaria de volta, desligou o chuveiro e saiu correndo. O secador encaminhava-se lentamente para a cozinha, onde a Mulher e a Empregada, assustadas, testavam todas as utilidades domésticas. A janela da máquina de lavar roupa trasmitia o padrão do Canal 10, e o fogão, agora, dava o noticiário das oito. O Consumidor chegou a tempo de evitar que o secador atacasse sua Mulher por trás. Atirou o secador com força contra a parede. Ouviu-se um berro de dor e fúria partindo dos alto-falantes do estéreo, na sala, e ao mesmo tempo a geladeira começou a movimentar-se pesadamente na direção do Consumidor, da Mulher e da Empregada.

- A chave! - gritou o consumidor.

Saíram todos correndo pela porta da cozinha. Chegaram até a chave geral. O Consumidor abriu a portinhola, puxou a alavanca e ouviu nitidamente que se ligava o motor do Dodge Dart na garagem. O melhor era fugir!

Correram para a garagem, entraram no carro, o Consumidor botou em primeira, apertou o acelerador e um Boeing caiu em cima da casa.

Luís Fernando Veríssimo

Extraido de:

- Para gostar de ler - Volume 07 - Editora Atica

A mancha Indelével * Juan Bosch

Todos os que haviam cruzado a porta antes de mim, haviam entregue suas cabeças, e eu as via colocadas em uma longa fileira de vitrines que estavam encostadas à parede, em frente. Seguramente nessas vitrines não entrava ar contaminado, pois as cabeças se conservavam em forma admirável, quase como se estivessem vivas, ainda que lhes faltassem o fluxo do sangue debaixo da pele. Devo confessar que o espetáculo me causou um medo súbito e intenso. Durante verdadeiro tempo senti-me paralisado pelo terror. Mas era o caso que ainda incapacitado para pensar e para atuar, eu estava ali: tinha passado o umbral e tinha que entregar minha cabeça. Nada poderia evitar essa macabra experiência.

A situação era, em verdade, aterradora. Parecia que não existia distância entre a vida que tinha deixado atrás, do outro lado da porta, e a que iria se iniciar nesse momento. Fisicamente, a distância seria de três metros, talvez de quatro.

No entanto, o que via indicava que a separação entre o que fui e o que seria não podia medir-se em termos humanos.

- Entregue sua cabeça - disse uma voz suave.

- A minha? - perguntei, com tanto medo que, a duras penas, conseguia me ouvir.

- Claro, qual seria?

Apesar de não ser autoritária, a voz enchia todo o salão e ressoava entre as paredes, que se cobriam com luxuosos tapetes. Eu não podia saber de onde saía. Tinha a impressão de que tudo o que via estava falando há tempos: o piso de mármore negro e alvo, o tapete vermelho que ia da escadaria à grande mesa do saguão, e o tapete similar que cruzava todo perímetro pelo centro; as grandes colunas de maiólica, as cornijas de cubos dourados, os dois enormes lustres com pingentes de cristal de Bohemia. Só possuía absoluta certeza que nenhuma das inúmeras cabeças das vitrines havia emitido o menor som. 

Talvez com o desejo inconsciente de ganhar tempo, perguntei.

- E como tiro minha cabeça?

- Imprima força com as duas mãos, apoiando os polegares nas curvas do queixo; empurre-a para cima e verá com que facilidade sai. Coloque-a depois sobre a mesa.

Se tivesse se tratado de um pesadelo teria me explicado a ordem e minha situação. Mas não era um pesadelo. Isso estava me sucedendo em pleno estado de lucidez, enquanto me achava de pé e solitário no meio de um luxuoso salão. Não se via nenhuma cadeira, e como tremia de cima a baixo, devido ao frio mortal que tinha se desatado em minhas veias, precisava me sentar ou me agarrar de algo. Ao fim, apoiei as duas mãos na mesa.

- Não escutou ou não compreendeu? - disse a voz.

Já disse que a voz não era autoritária senão suave. Talvez por isso parecia-me tão terrível. É verdadeiramente aterrador ouvir a ordem de tirar-se a cabeça com tom normal, bem tranqüilo. Estava seguro de que o dono dessa voz tinha repetido a ordem tantas vezes que já não lhe dava a menor importância ao que dizia.

Ao fim, consegui falar.

- Sim, escutei e compreendi – disse. - Mas não posso despojar de minha cabeça sem mais nem menos. Dê-me algum tempo para pensar. Compreenda que ela está cheia das minhas ideias, de minhas lembranças. É o resumo de minha própria vida. Ademais, se fico sem ela, com que vou pensar?

A embromada não me saiu inesperadamente. Afogava-me. Duas vezes tive que parar para tomar ar. Calei, e pareceu-me que a voz emitia um ligeiro rosnado, como riso a zombar.

- Aqui não tem que pensar. Pensaremos por você. Quanto às suas lembranças, não irá precisar delas mais: vai começar uma nova vida.  

- Vida sem relação comigo mesmo, sem minhas ideias, sem emoções próprias? - perguntei.

Instintivamente olhei para a porta por onde tinha entrado. Estava fechada. Voltei os olhos aos dois extremos do grande salão. Tinha também portas nesses extremos, mas nenhuma estava aberta.

O espaço era longo e de teto alto, o qual me fez sentir tão desabrigado como um menino perdido em uma grande cidade. Não tinha o menor sinal de vida. Só eu me achava nesse salão imponente.

Pior ainda: estávamos a voz e eu. Mas a voz não era humana, não podia relacionar com um ser de carne e osso. Achava-me com a impressão de que milhares de olhos malignos, também sem vida, estavam olhando desde as paredes, e que milhões de seres minúsculos e invisíveis espreitavam meu pensamento.

-Por favor, não nos faça perder tempo porque há outros na vez - disse a voz.

Não é fácil explicar o que essas palavras significaram para mim. Senti que alguém iria entrar, que já não estaria mais sozinho, e voltei o rosto para a porta. Não havia me equivocado; uma mão sujeitava no bordo da grande porta brilhante e empurrava-a para dentro, e um pé pousava-se no umbral. Pela abertura da porta advertia-se que afora tinha pouca luz. Sem dúvida era a hora indecisa entre o dia que morre e que ainda não havia morrido.

No meio de meu terror atuei como um autômato. Lancei-me impetuosamente para a porta, empurrei quem entrava e saltei à rua. Dei-me conta de que alguém se alarmou ao me vir correr; talvez pensassem que tinha roubado ou tinha sido surpreendido no momento de roubar. Compreendia que levava o rosto pálido e os olhos arregalados, como se fugisse da polícia que me perseguia. De qualquer jeito, não me importava. Minha necessidade de fugir era imperiosa, e fugia como louco.  

Durante uma semana não me atrevi a sair de casa. Ouvia dia e noite a voz e via em todas as partes os milhares de olhos sem vida e as centenas de cabeças sem corpo. Mas na oitava noite, aliviado de meu medo, arrisquei-me a ir à esquina, a um café, visitado sempre por gente estranha. Ao lado da mesa que ocupei tinha outra vazia. Em pouco, dois homens sentaram-se nela. Um tinha os olhos sombrios; olhou-me com intensidade e depois disse ao outro:

- Esse foi o que fugiu depois que estava...

Eu tomava nesse momento uma caneca de café. Tremeram-me as mãos com tanta violência que um pouco da bebida derramou-se em minha camisa.

O problema é que não tenho outra camisa nem como adquirir outra. Enquanto me esforço em fazer desaparecer a mancha ouço sem cessar as últimas palavras do homem dos olhos sombrios:

-Depois que já estava inscrito.

O medo faz-me suar frio. E eu sei que não poderei me livrar deste medo; que o sentirei ante qualquer desconhecido. Pois em verdade ignoro se os dois homens eram membros ou eram inimigos do Partido.

Agora estou em casa, tratando de lavar a camisa. Tenho usado sabão, escova e um produto químico especial que achei no banho. A mancha não sai. Está aí, indelével. Ao invés, parece-me que a cada esforço para apagar, destaca-se mais.


Juan Bosch



Traduzido pelo blog Arquivo do Barreto


O programa de 12 passos de Godzilla - Joe R.Lansdale


Um: Trabalho honesto

Godzilla em seu caminho para o trabalho na fundição, vê um prédio grande que parece ser feito de cobre brilhante e negro, refletindo o sol. Ele vê sua própria imagem refletida e pensa nos velhos tempos, pensa em como seria pisoteá-lo todo, queimá-lo, arrebentar aquelas janelas com seu bafo de fogo e então dançar entre as ruínas e a fumaça.
Um dia de cada vez, disse para si mesmo. Um dia de cada vez.
Forçou-se a olhar para o prédio e então foi para a fundição.
Colocou seu capacete. Soprou seu fogo dentro do barril de partes de carros usados, transformando-os em metal derretido. O metal escorreu pelas calhas para dentro de novos moldes de novas partes de carros. Portas, tetos, etc.
Godzilla sentiu que parte da tensão se dissipava.

Dois: Recreação

Depois do trabalho, Godzilla evitou o centro da cidade. Parar de soprar as chamas após o trabalho era difícil. Foi ao Centro Recreacional Grande Monstro. Gorgo está lá, bebendo água com óleo, como sempre. Gorgo está falando sobre os velhos tempos. É sempre assim. Os velhos tempos.
Eles vão para os fundos e queimam alguns destroços colocados lá diariamente para uso do Centro. Kong também está lá, bêbado. Está brincando com algumas bonecas Barbie. Ele sempre faz isso. Finalmente as guarda no bolso do casaco, pega seu andador e balança-se até Godzilla e Gorgo.
Gorgo diz: ‘Desde aquela queda, ele não faz mais porra nenhuma. E qual é o lance dele com aquelas bonecas de plástico? Será que ele não sabe que existem mulheres de verdade no mundo?’
Godzilla pensa ver lágrimas nos olhos de Gorgo, que saudoso observa Kong caminhar com dificuldade. Godzilla reduz algumas sucatas em cinzas, mas para não é o bastante, poderia soprar fogo o dia inteiro e mesmo assim não chegaria ao máximo de sua compulsão.
Não era sequer tão satisfatório quanto a fundição.
Foi para a casa. 
 
Três: Sexo e destruição

Naquela noite exibiram um filme de monstros na televisão. O de sempre. Grandes monstros espalhando destruição, uma cidade após a outra. Esmagando pedestres debaixo de seus pés.
Godzilla examinou a sola de seu pé direito, a cicatriz continuava lá, cicatriz de achatar carros. Lembrava-se da sensação das pessoas serem espremidas entre os dedos. Pensou sobre tudo isso e mudou de canal. Assistiu 20 minutos de ‘Mister Ed’, desligou a televisão e masturbou-se com a lembrança de cidades queimando e carne esmagada.
Depois, tarde da noite, acordou banhado em suor. Foi até o banheiro e rápidamente fez algumas figuras humanas, bem toscas, a partir das barras de sabão. Esmagou então o sabão entre os dedos, de olhos fechados, tentando se lembrar da sensação.

Quatro: Viagem à praia e a grande tartaruga

Sábado Godzilla foi até a praia. Um monstro bêbado que parecia uma grande tartaruga, voou na sua direção e o acertou em cheio. Xingou-o, procurando briga.
Godzilla lembrou do nome da tartaruga. Gamera.
Gamera sempre fora um problema. Ninguém gostava de Gamera. Era um verdadeiro pé no saco!
Godzilla cerrou os dentes e segurou as chamas. Deu as costas para ele e voltou-se para a praia. Murmurava um mantra secreto, dado a ele por seu orientador.
A tartaruga gigante continuou a persegui-lo, xingando-o.
Godzilla guardou seus apetrechos de praia e foi para casa. Nas suas costas, ouvia a tartaruga ainda xingando, ainda pressionando-o. Tudo que podia fazer era não fazer nada com aquela idiota miserável. Tudo que podia fazer. Sabia que a tartaruga estaria nas manchetes amanhã.
Ela acabaria destruindo alguma coisa. 

Godzilla pensou que talvez devesse tentar conversar com ela, apresentá-la ao programa dos doze passos. Era o que supostamente devia fazer. Ajudar aos outros. Talvez a tartaruga conseguisse se tranqüilizar. Mas você só pode ajudar aqueles que se ajudam. Godzilla percebeu que não poderia salvar todos os monstros do mundo. Precisavam tomar suas decisões sozinhos.
Fez uma anotação mental de que deveria andar com folhetos dos 12 Passos com ele, a partir de agora.
Mais tarde ligou para seu orientador e contou sobre seu dia miserável. Que queria voltar a queimar edifícios e brigar com a grande tartaruga.
Reptilicus disse que era assim mesmo. Que ele teria dias como aquele.
Uma vez um monstro sempre um monstro. Mas que ele era um monstro recuperado. Levava a vida um dia de cada vez. Era o único jeito de ser feliz. Você não podia queimar e matar e mastigar humanos e suas criações, sem pagar o preço da culpa, sem ser alvo da artilharia.
Godzilla agradeceu Reptilicus e relaxou.
Sentiu-se melhor por algum tempo, mas por dentro ele pensava o quanto de culpa ele guardava em seu coração.
Pensou que talvez fosse a artilharia e os disparos de foguetes o que ele realmente detestava, não a culpa.

Cinco: Saindo dos trilhos

Aconteceu de uma hora para outra. Voltava do trabalho quando viu uma pequena casa de cachorro, com um cachorro junto da entrada. Ninguém por perto. O cachorro parecia velho, estava preso por uma corrente. Um cachorro qualquer, vagabundo. A tigela de água vazia.
O cachorro vivia uma vida miserável. Preso. Entediado. Sem água.
Godzilla saltou sobre a casinha e esmagou o cachorro. Queimou o que restou do cachorro e da casinha. Pulou sobre os restos carbonizados. Cinzas negras e cachorro queimado entre seus dedos o lembraram dos velhos tempos.
Rápido deixou o local, ninguém o vira. Sentiu-se mal. Ligou para Reptilicus e ouviu da secretária eletrônica:
‘Não estou em casa agora, por favor deixe sua mensagem e eu ligarei de volta’.
A máquina bipou. Godzilla disse: ‘Socorro'. 
 
Seis: O orientador

A casa de cachorro ficou em sua cabeça por todo o dia seguinte. Enquanto trabalhava, pensava em como o cachorro queimara, como a casinha se partira em pedaços. Pensou na dança que fez sobre as cinzas.
Aquele dia se arrastou como uma eternidade. Pensou que após o trabalho, talvez pudesse achar outra casa de cachorro, outro cachorro.
No caminho de casa, manteve-se atento, mas nada de casas de cachorro ou mesmo cachorros.
Em casa, uma luz piscava em sua secretária eletrônica. Uma mensagem de Reptilicus, que dizia: ‘Me ligue.’
Godzilla ligou e disse: ‘Reptilicus! Perdoe-me! Eu pequei.’

Sete: Desilusão e desapontamento


A conversa com Reptilicus não ajudara muito. Godzilla reduziu a pedacinhos todos os folhetos do programa dos doze passos. Limpou o traseiro com alguns e os atirou pela janela. Os que restaram, colocou na pia e queimou. Queimou a mesa de café e uma cadeira e quando se deu conta do que tinha feito, sentiu-se pior. Sabia que a proprietária iria esperar que ele repusesse os móveis. Ligou o radio e chorou na cama ao ouvir uma estação de antigos sucessos.
Dormiu enquanto “Martha and the Vandellas” cantavam "Heat Wave" (Onda de calor). 

Oito: Desempregado

Godzilla sonhava que o Deus escamoso tinha surgido para ele, cuspindo fogo. Disse que tinha vergonha de Godzilla. Disse que esperava mais dele. Godzilla acordou, afogando-se em seu suor. Estava só. Sentiu-se culpado. Tinha vaga lembrança de ter acordado e saído por ai, pela cidade,queimando e destruindo. Estava cansado, mas não se lembrava de tudo que havia feito. Talvez lesse a respeito nos jornais sobre isso. Cheirava a madeira carbonizada e plástico derretido. Havia uma coisa gosmenta entre seus dedos e algo lhe dizia que não era sabão.
Queria se matar. Foi buscar sua arma, mas estava bêbado demais para encontrá-la. Caiu ao chão. Sonhou com o demônio desta vez. Parecia-se com o Deus, exceto por ter uma só sobrancelha que se esticava sobre ambos os olhos. O demônio disse que tinha vindo atrás dele.
Godzilla lutou e rugiu. Sonhou que trocava socos com o demônio e que seu fogo não fazia efeito nele. Acordou tarde no dia seguinte. Lembrava-se do sonho. Não dava para trabalhar daquele jeito e dormiu o resto do dia. De noite leu sobre ele nos jornais. Realmente fizera alguns estragos, queimando parte da cidade. Havia uma foto bem clara dele, arrancando a cabeça de uma mulher.
Recebeu uma ligação de seu gerente naquela noite. Disse que Godzilla estava demitido.

Nove: Sedução


No dia seguinte apareceram os humanos. vestiam ternos pretos e sapatos polidos e mostraram credenciais. Estavam armados também.
Um deles disse: ‘Você é um problema. Nosso governo quer mandá-lo de volta ao Japão.’
‘Eles me odeiam por lá. Eu acabei com Tóquio!’ disse Godzilla. 
 
‘Você também não tem se dado bem por aqui. Por sorte você queimou uma parte menos privilegiada da cidade, ou você estaria ferrado. Isso dito, temos uma proposta de trabalho para você.’
‘Qual?’
‘Você coça nossas costas e nós coçamos as suas.’
Então o homem contou o que tinha em mente.

Dez: Escolhas

Godzilla mal dormiu naquela noite. Levantou-se e brincou de esmagar seu pequeno toca-discos. Dançou pela sala como se estivesse se divertindo, mas não estava.. Foi ao Centro Recreacional Grande Monstro.
Encontrou Kong num banco, despindo uma de suas Barbies, e tocando entre as pernas, a vagina que desenhara com caneta azul. Agora ele desenhava pêlos pubianos nela.
Godzilla achava que talvez Kong pudesse fazer o trabalho por ele.
Por Deus, você não quer acabar como Kong. Completamente fora deste mundo.
Por outro lado, se ele tivesse algumas bonecas para queimar, serviria para acalmá-lo.
Não. Depois de experimentar a coisa de verdade, para que serviria uma Barbie? Era como cerveja sem álcool. Como aqueles escombros nos fundos. Cerveja sem álcool. A fundição. O programa de doze passos. Tudo cerveja sem álcool.

Onze: Trabalhando para o governo

Godzilla ligou para os desgraçados do governo.
‘Certo! Eu farei.’
‘Ótimo. Achávamos que toparia. Olhe em sua caixa de correio. O mapa e as instruções estão lá dentro.’
Godzilla saiu de casa e foi conferir. Havia um envelope pardo com instruções dentro. Dizia:
‘Queime todos os pontos que estão no mapa. Quando terminar com estes, encontrará outros. Apenas tenha certeza de que ninguém irá escapar. Até o último homem, mulher e criança.’ 

Godzilla abriu o mapa. Haviam vários pontos marcados de vermelho. Sob as marcações ele podia ler: ‘Cidade dos Crioulos’, ‘Vila dos Amarelos’, ‘Enclave do lixo branco’, ‘Bairro das piranhas’. ‘Monte de Democratas’.
Godzilla entendeu o que poderia fazer. Poderia ser espontâneo. Queimar sem culpa. Esmagar sem culpa. E não somente isso, eles haviam lhe mandado um cheque.
Ele fora contratado por sua cidade adotiva para limpar a sujeira, ou era como eles viam.

Doze: O passo final


Godzilla parou perto do primeiro lugar da lista: ‘Cidade dos crioulos’
Viu crianças brincando nas ruas. Cães. Pessoas olhando para ele, imaginando o que ele fazia ali.
Godzilla derrepente sentiu algo dentro de si. Sabia que estava sendo usado. Virou-se e saiu dali. Foi em direção a área da cidade onde ficavam os prédios do governo.
Começou pela mansão do governador.
Estava fora de controle. A artilharia caiu encima dele, mas de nada serviu.
Estava enlouquecido. Como nos velhos tempos.
Reptilicus apareceu com um megafone, tentando acalmar Godzilla, mas ele não o ouvia. Queimava o topo do prédio da prefeitura, descendo e queimando e mais, até o chão.
Kong apareceu e o saudou. Kong então atirou longe o andador e passou a destruir tudo ao redor e depois subiu no prédio do governo. Balas zuniam à volta do macaco gigante.
Godzilla ficou olhando Kong alcançar o topo, segurando-se com uma das mãos enquanto balançava uma boneca Barbie com a outra. Kong então colocou a Barbie entre os dentes e do bolso tirou um Ken despido. Kong havia feito um tipo de pênis em Ken e gritava ‘É isso ai! É isso ai! Eu sou de Antes e Depois de Cristo, seus filhosdaputa!’ 
 
Jatos apareceram e lançaram um ataque contra Kong, que levou um míssil bem entre os dentes.
Barbie, dentes e pedaços de cérebro encheram o céu cinzento. Kong caiu.
Gorgo saiu do meio da multidão e debruçado sobre o macaco, chorando, pegou-o nos braços.
A mão de Kong lentamente se abriu, revelando Ken e seu ‘pinto’ quebrado.
A tartaruga voadora apareceu e Kong arrancou o topo do prédio e bateu em Gamera com ele.
Até os policiais e o exército aplaudiram.
Godzilla bateu, bateu e bateu na tartaruga, espalhando pedaços de carne de tartaruga por toda parte, igual a quando se sobreaquece um poodle em um forno de microondas.
Alguns pedestres recolheram nacos da carne e levaram para casa para assar, por que havia um boato que dizia que tinha gosto de galinha.
Godzilla levou três foguetes no peito, cambaleou e tombou. Os tanques o cercaram.
Godzilla abriu sua boca sangrenta e riu. Pensou, se a coisa não se resolver aqui, terei que acabar com os negros, com os amarelos, o lixo branco e os homossexuais.
Pro inferno com o programa dos doze passos. Pro inferno com a humanidade.
Então Godzilla morreu e fez a maior nojeira na rua.
Os militares saíram de perto, pisando na ponta dos pés e segurando seus narizes.
Mais tarde Gorgo reclamaria o corpo de Kong. 

Reptilicus, entrevistado pelos repórteres da tevê, declarou:
‘Zilla quase conseguiu, caramba! Quase! Se ele tivesse conseguido completar o programa, ele ficaria ok. Mas a pressão da sociedade foi demais pra ele. Você não pode culpá-lo pelo que a sociedade fez com ele.’
No caminho de casa, Reptilicus lembrou dos prédios em chamas. Dos disparos das armas. Igualzinho aos velhos tempo, quando ele, Zilla, Kong e a idiota da tartaruga eram jovens.
Reptilicus pensou em Kong, balançando o boneco Ken, com Barbie entre os dentes.
Lembrou de Godzilla morrendo de rir.
Um monte de velhos sentimentos afloraram em Reptilicus. Era duro lutar contra isso.
Encontrou um local remoto e uma casa às escuras e urinou pela janela esquecida aberta, então foi para casa.

Joe R.Landscape, 'Godzilla's twelve step program', 1994.
Originalmente publicada na coleção ‘Writer of the Purple Rage’.

* Retirado do blog: Capacitor Fantástico