sexta-feira

Carta de um turco e seu amigo Bababec * Voltaire

Quando me achava na cidade de Benarés, à margem do Ganges, antiga pátria dos brâmanes, procurava instruir-me. Compreendia passavelmente o hindu; escutava muito e observava tudo. Parava em casa de meu correspondente Omri, o homem mais digno que já conheci na vida. Era ele da religião dos brâmanes; quanto a mim, tenho a honra de ser muçulmano; mas nunca trocamos uma palavra mais alta a respeito de Maomé e de Brama. Fazíamos as abluções cada qual para o seu lado; bebíamos da mesma limonada, comíamos do mesmo arroz, como irmãos.

Fomos um dia juntos ao pagode de Gavani. Vimos ali vários bandos de faquires. Uns eram janguis, isto é, faquires contemplativos; e os outros eram discípulos dos antigos ginossofistas, que levavam uma vida ativa. Possuem, como é sabido; uma língua erudita, que é a dos mais antigos brâmanes, e, nessa língua, um livro chamado os Vedas. É certamente o mais antigo livro de toda a Ásia, sem excetuar o Zend Avesta.

Passei por um faquir que lia esse livro.

— Ah! desgraçado infiel! – exclamou ele. – Tu me fizeste perder o número das vogais que eu estava contando; e por isso a minha alma vai passar para o corpo de uma lebre, em vez de ir para o de um papagaio, como eu tinha motivos de crer.

Dei-lhe uma rúpia para consolá-lo. Dali a alguns passos, aconteceu-me a desgraça de espirrar, e o ruído que fiz despertou um faquir que se achava em êxtase.

— Onde estou? – disse ele. – Que horrível queda! Não vejo mais a ponta do nariz; a luz celeste dissipou-se. 

— Se sou o causante – disse-lhe eu – de que afinal enxergues além da ponta do nariz, eis uma rúpia para reparar o mal. Retoma a tua luz celeste.

Depois de assim contornar discretamente a situação, fui ter com os ginossofistas: vários deles me trouxeram uns preguinhos muito bonitos, para os fincar em meus braços e coxas, em honra de Brama. Comprei-lhes os pregos, com os quais mandei pregar meus tapetes. Outros dançavam sobre as mãos; outros na corda bamba; outros andavam num pé só. Havia uns que carregavam correntes, outros uma sela, outros que conservavam a cabeça dentro de uma caixa: de resto, a melhor gente do mundo.

Meu amigo Omri levou-me à cela de um dos mais famosos; chamava-se Bababec: estava nu como um macaco e trazia ao pescoço uma grossa cadeia que pesava mais de sessenta libras. Achava-se sentado em um banco de madeira, lindamente guarnecido de pregos que lhe penetravam nas nádegas, e dir-se-ia que estava num leito de cetim. Muitas mulheres vinham consultá-lo; era o oráculo das famílias; e pode-se dizer que gozava de grande reputação. Fui testemunha da longa conversa que Omri teve com ele.

— Acreditas, meu pai – perguntou-lhe Omri, – que, após haver passado pela prova das sete metempsicoses, possa eu chegar à morada de Brama?

— Isto é conforme – disse o faquir. – Como vives?

— Trato – disse Omri – de ser bom cidadão, bom esposo, bom pai, bom amigo. Empresto dinheiro sem juros aos ricos e dou aos pobres. Incentivo a paz entre meus vizinhos.

— Não metes algumas vezes pregos no ânus?

— Nunca, reverendo.

— Sinto muito: dessa maneira, só irás para o décimo-nono céu; e é uma pena.  

— Qual! Está certo. Sinto-me muito contente com a minha parte. Que me importa o décimo-nono ou o vigésimo, contanto que eu cumpra o dever na minha peregrinação, e seja bem recebido na última morada. Não será suficiente ser um homem direito neste país e depois um homem venturoso no país de Brama? Para que céu pretendes ir então, com os teus pregos e as tuas correntes?

— Para o trigésimo-quinto – disse Bababec.

— És muito engraçado – replicou Omri – com isso de quereres ficar alojado acima de mim: talvez não seja mais que um sinal de excessiva ambição. Se condenas aqueles que buscam honrarias nesta vida, por que então ambicionas honrarias tão grandes na outra? E de resto, por que motivo pretendes ser mais bem tratado do que eu? Fica sabendo que dou em esmolas, em dez dias, mais do que te custam em dez anos todos os pregos que fincas no traseiro. A Brama, pouco se lhe dá que passes o dia nu, com uma corrente ao pescoço. Belo serviço prestas assim à pátria. Considero cem vezes mais a um homem que semeia legumes ou planta árvores do que todos os teus camaradas que olham para a ponta do nariz ou carregam uma sela, por excesso de nobreza d'alma. Depois de assim falar, Omri se abrandou, mostrou-se gentil, acarinhou-o, persuadindo-o enfim a que deixasse os pregos e as correntes, e fosse viver uma vida às direitas, na sua companhia.

Tiraram-lhe o cascão, aspergiram-no de perfumes, vestiram-no decentemente.

Viveu quinze dias muito sensatamente, e confessou que era mil vezes mais feliz do que antes.

Mas desacreditava-se, entre o povo e as mulheres, não vinham mais consultá-lo. Ele deixou Omri e voltou a seus pregos para ter consideração.

Voltaire

Confuso * Luis Fernando Veríssimo


O Consumidor acordou confuso. Saíam torradas do seu rádio-despertador. De onde saía então - quis descobrir - uma voz do locutor? Saía do fogão elétrico, na cozinha, onde a empregada, apavorada, recuara até a parede e, sem querer, ligara o interruptor da luz, fazendo funcionar o gravador na sala. O Consumidor confuso sacudiu a cabeça, desligou o fogão e o interruptor, saiu da cozinha, entrou no banheiro e ligou seu barbeador elétrico. Nada aconteceu. Investigou e descobriu que a sua Mulher, na cama, é que estava ligada e zunia como um barbeador. Abriu uma torneira do banheiro para lavar o sono do rosto. Talvez aquilo tudo fosse só o resto de um pesadelo. Pela torneira jorrou um café instantâneo.

Confuso, o Consumidor escovou os dentes com o novo desodorante e sentou na tampa da privada - fazendo soar a campainha da porta - para pensar. Acendeu um batom Roxo Purple, nova sensação, da Mulher. O que estaria acontecendo? Resolveu telefonar para o Amigo. Saiu do banheiro e foi para a sala.

Quando girou o disco do telefone a televisão a cores começou a funcionar. Pensou com rapidez. Foi até o televisor e, no selecionador de canais, discou o número do amigo. Saiu laranjada do telefone. Apagou o batom num cinzeiro e voltou para o quarto. A Mulher acabava de acordar e, sonolenta, caminhava na direção do banheiro. Viu a Mulher fechar a porta do banheiro e dali a pouco ouviu a campainha da porta tocar de novo. Esperou. 
 
Quando a mulher abriu a porta do banheiro e, confusa, lhe disse, "Querido..." ele antecipou:

- Já sei. Saiu café da torneira da pia.

- Não. Liguei o chuveiro e uma voz disse "Alô?"

Era o Amigo.

- Deixe que eu falo com ele.

Foi até o chuveiro falar com o Amigo. Contou tudo que estava acontecendo. O Amigo disse que na sua casa era a mesma coisa, saía música do condicionador de ar e a televisão corria atrás das crianças dizendo bandalheira; era o fim do mundo.

Foi quando o Consumidor, confuso, viu que o novo secador de cabelo descia sozinho da sua prateleira, atravessava o chão do banheiro como um pequeno mas decidido tanque e saía pela porta. Disse para o Amigo que o chamaria de volta, desligou o chuveiro e saiu correndo. O secador encaminhava-se lentamente para a cozinha, onde a Mulher e a Empregada, assustadas, testavam todas as utilidades domésticas. A janela da máquina de lavar roupa trasmitia o padrão do Canal 10, e o fogão, agora, dava o noticiário das oito. O Consumidor chegou a tempo de evitar que o secador atacasse sua Mulher por trás. Atirou o secador com força contra a parede. Ouviu-se um berro de dor e fúria partindo dos alto-falantes do estéreo, na sala, e ao mesmo tempo a geladeira começou a movimentar-se pesadamente na direção do Consumidor, da Mulher e da Empregada.

- A chave! - gritou o consumidor.

Saíram todos correndo pela porta da cozinha. Chegaram até a chave geral. O Consumidor abriu a portinhola, puxou a alavanca e ouviu nitidamente que se ligava o motor do Dodge Dart na garagem. O melhor era fugir!

Correram para a garagem, entraram no carro, o Consumidor botou em primeira, apertou o acelerador e um Boeing caiu em cima da casa.

Luís Fernando Veríssimo

Extraido de:

- Para gostar de ler - Volume 07 - Editora Atica

A mancha Indelével * Juan Bosch

Todos os que haviam cruzado a porta antes de mim, haviam entregue suas cabeças, e eu as via colocadas em uma longa fileira de vitrines que estavam encostadas à parede, em frente. Seguramente nessas vitrines não entrava ar contaminado, pois as cabeças se conservavam em forma admirável, quase como se estivessem vivas, ainda que lhes faltassem o fluxo do sangue debaixo da pele. Devo confessar que o espetáculo me causou um medo súbito e intenso. Durante verdadeiro tempo senti-me paralisado pelo terror. Mas era o caso que ainda incapacitado para pensar e para atuar, eu estava ali: tinha passado o umbral e tinha que entregar minha cabeça. Nada poderia evitar essa macabra experiência.

A situação era, em verdade, aterradora. Parecia que não existia distância entre a vida que tinha deixado atrás, do outro lado da porta, e a que iria se iniciar nesse momento. Fisicamente, a distância seria de três metros, talvez de quatro.

No entanto, o que via indicava que a separação entre o que fui e o que seria não podia medir-se em termos humanos.

- Entregue sua cabeça - disse uma voz suave.

- A minha? - perguntei, com tanto medo que, a duras penas, conseguia me ouvir.

- Claro, qual seria?

Apesar de não ser autoritária, a voz enchia todo o salão e ressoava entre as paredes, que se cobriam com luxuosos tapetes. Eu não podia saber de onde saía. Tinha a impressão de que tudo o que via estava falando há tempos: o piso de mármore negro e alvo, o tapete vermelho que ia da escadaria à grande mesa do saguão, e o tapete similar que cruzava todo perímetro pelo centro; as grandes colunas de maiólica, as cornijas de cubos dourados, os dois enormes lustres com pingentes de cristal de Bohemia. Só possuía absoluta certeza que nenhuma das inúmeras cabeças das vitrines havia emitido o menor som. 

Talvez com o desejo inconsciente de ganhar tempo, perguntei.

- E como tiro minha cabeça?

- Imprima força com as duas mãos, apoiando os polegares nas curvas do queixo; empurre-a para cima e verá com que facilidade sai. Coloque-a depois sobre a mesa.

Se tivesse se tratado de um pesadelo teria me explicado a ordem e minha situação. Mas não era um pesadelo. Isso estava me sucedendo em pleno estado de lucidez, enquanto me achava de pé e solitário no meio de um luxuoso salão. Não se via nenhuma cadeira, e como tremia de cima a baixo, devido ao frio mortal que tinha se desatado em minhas veias, precisava me sentar ou me agarrar de algo. Ao fim, apoiei as duas mãos na mesa.

- Não escutou ou não compreendeu? - disse a voz.

Já disse que a voz não era autoritária senão suave. Talvez por isso parecia-me tão terrível. É verdadeiramente aterrador ouvir a ordem de tirar-se a cabeça com tom normal, bem tranqüilo. Estava seguro de que o dono dessa voz tinha repetido a ordem tantas vezes que já não lhe dava a menor importância ao que dizia.

Ao fim, consegui falar.

- Sim, escutei e compreendi – disse. - Mas não posso despojar de minha cabeça sem mais nem menos. Dê-me algum tempo para pensar. Compreenda que ela está cheia das minhas ideias, de minhas lembranças. É o resumo de minha própria vida. Ademais, se fico sem ela, com que vou pensar?

A embromada não me saiu inesperadamente. Afogava-me. Duas vezes tive que parar para tomar ar. Calei, e pareceu-me que a voz emitia um ligeiro rosnado, como riso a zombar.

- Aqui não tem que pensar. Pensaremos por você. Quanto às suas lembranças, não irá precisar delas mais: vai começar uma nova vida.  

- Vida sem relação comigo mesmo, sem minhas ideias, sem emoções próprias? - perguntei.

Instintivamente olhei para a porta por onde tinha entrado. Estava fechada. Voltei os olhos aos dois extremos do grande salão. Tinha também portas nesses extremos, mas nenhuma estava aberta.

O espaço era longo e de teto alto, o qual me fez sentir tão desabrigado como um menino perdido em uma grande cidade. Não tinha o menor sinal de vida. Só eu me achava nesse salão imponente.

Pior ainda: estávamos a voz e eu. Mas a voz não era humana, não podia relacionar com um ser de carne e osso. Achava-me com a impressão de que milhares de olhos malignos, também sem vida, estavam olhando desde as paredes, e que milhões de seres minúsculos e invisíveis espreitavam meu pensamento.

-Por favor, não nos faça perder tempo porque há outros na vez - disse a voz.

Não é fácil explicar o que essas palavras significaram para mim. Senti que alguém iria entrar, que já não estaria mais sozinho, e voltei o rosto para a porta. Não havia me equivocado; uma mão sujeitava no bordo da grande porta brilhante e empurrava-a para dentro, e um pé pousava-se no umbral. Pela abertura da porta advertia-se que afora tinha pouca luz. Sem dúvida era a hora indecisa entre o dia que morre e que ainda não havia morrido.

No meio de meu terror atuei como um autômato. Lancei-me impetuosamente para a porta, empurrei quem entrava e saltei à rua. Dei-me conta de que alguém se alarmou ao me vir correr; talvez pensassem que tinha roubado ou tinha sido surpreendido no momento de roubar. Compreendia que levava o rosto pálido e os olhos arregalados, como se fugisse da polícia que me perseguia. De qualquer jeito, não me importava. Minha necessidade de fugir era imperiosa, e fugia como louco.  

Durante uma semana não me atrevi a sair de casa. Ouvia dia e noite a voz e via em todas as partes os milhares de olhos sem vida e as centenas de cabeças sem corpo. Mas na oitava noite, aliviado de meu medo, arrisquei-me a ir à esquina, a um café, visitado sempre por gente estranha. Ao lado da mesa que ocupei tinha outra vazia. Em pouco, dois homens sentaram-se nela. Um tinha os olhos sombrios; olhou-me com intensidade e depois disse ao outro:

- Esse foi o que fugiu depois que estava...

Eu tomava nesse momento uma caneca de café. Tremeram-me as mãos com tanta violência que um pouco da bebida derramou-se em minha camisa.

O problema é que não tenho outra camisa nem como adquirir outra. Enquanto me esforço em fazer desaparecer a mancha ouço sem cessar as últimas palavras do homem dos olhos sombrios:

-Depois que já estava inscrito.

O medo faz-me suar frio. E eu sei que não poderei me livrar deste medo; que o sentirei ante qualquer desconhecido. Pois em verdade ignoro se os dois homens eram membros ou eram inimigos do Partido.

Agora estou em casa, tratando de lavar a camisa. Tenho usado sabão, escova e um produto químico especial que achei no banho. A mancha não sai. Está aí, indelével. Ao invés, parece-me que a cada esforço para apagar, destaca-se mais.


Juan Bosch



Traduzido pelo blog Arquivo do Barreto


O programa de 12 passos de Godzilla - Joe R.Lansdale


Um: Trabalho honesto

Godzilla em seu caminho para o trabalho na fundição, vê um prédio grande que parece ser feito de cobre brilhante e negro, refletindo o sol. Ele vê sua própria imagem refletida e pensa nos velhos tempos, pensa em como seria pisoteá-lo todo, queimá-lo, arrebentar aquelas janelas com seu bafo de fogo e então dançar entre as ruínas e a fumaça.
Um dia de cada vez, disse para si mesmo. Um dia de cada vez.
Forçou-se a olhar para o prédio e então foi para a fundição.
Colocou seu capacete. Soprou seu fogo dentro do barril de partes de carros usados, transformando-os em metal derretido. O metal escorreu pelas calhas para dentro de novos moldes de novas partes de carros. Portas, tetos, etc.
Godzilla sentiu que parte da tensão se dissipava.

Dois: Recreação

Depois do trabalho, Godzilla evitou o centro da cidade. Parar de soprar as chamas após o trabalho era difícil. Foi ao Centro Recreacional Grande Monstro. Gorgo está lá, bebendo água com óleo, como sempre. Gorgo está falando sobre os velhos tempos. É sempre assim. Os velhos tempos.
Eles vão para os fundos e queimam alguns destroços colocados lá diariamente para uso do Centro. Kong também está lá, bêbado. Está brincando com algumas bonecas Barbie. Ele sempre faz isso. Finalmente as guarda no bolso do casaco, pega seu andador e balança-se até Godzilla e Gorgo.
Gorgo diz: ‘Desde aquela queda, ele não faz mais porra nenhuma. E qual é o lance dele com aquelas bonecas de plástico? Será que ele não sabe que existem mulheres de verdade no mundo?’
Godzilla pensa ver lágrimas nos olhos de Gorgo, que saudoso observa Kong caminhar com dificuldade. Godzilla reduz algumas sucatas em cinzas, mas para não é o bastante, poderia soprar fogo o dia inteiro e mesmo assim não chegaria ao máximo de sua compulsão.
Não era sequer tão satisfatório quanto a fundição.
Foi para a casa. 
 
Três: Sexo e destruição

Naquela noite exibiram um filme de monstros na televisão. O de sempre. Grandes monstros espalhando destruição, uma cidade após a outra. Esmagando pedestres debaixo de seus pés.
Godzilla examinou a sola de seu pé direito, a cicatriz continuava lá, cicatriz de achatar carros. Lembrava-se da sensação das pessoas serem espremidas entre os dedos. Pensou sobre tudo isso e mudou de canal. Assistiu 20 minutos de ‘Mister Ed’, desligou a televisão e masturbou-se com a lembrança de cidades queimando e carne esmagada.
Depois, tarde da noite, acordou banhado em suor. Foi até o banheiro e rápidamente fez algumas figuras humanas, bem toscas, a partir das barras de sabão. Esmagou então o sabão entre os dedos, de olhos fechados, tentando se lembrar da sensação.

Quatro: Viagem à praia e a grande tartaruga

Sábado Godzilla foi até a praia. Um monstro bêbado que parecia uma grande tartaruga, voou na sua direção e o acertou em cheio. Xingou-o, procurando briga.
Godzilla lembrou do nome da tartaruga. Gamera.
Gamera sempre fora um problema. Ninguém gostava de Gamera. Era um verdadeiro pé no saco!
Godzilla cerrou os dentes e segurou as chamas. Deu as costas para ele e voltou-se para a praia. Murmurava um mantra secreto, dado a ele por seu orientador.
A tartaruga gigante continuou a persegui-lo, xingando-o.
Godzilla guardou seus apetrechos de praia e foi para casa. Nas suas costas, ouvia a tartaruga ainda xingando, ainda pressionando-o. Tudo que podia fazer era não fazer nada com aquela idiota miserável. Tudo que podia fazer. Sabia que a tartaruga estaria nas manchetes amanhã.
Ela acabaria destruindo alguma coisa. 

Godzilla pensou que talvez devesse tentar conversar com ela, apresentá-la ao programa dos doze passos. Era o que supostamente devia fazer. Ajudar aos outros. Talvez a tartaruga conseguisse se tranqüilizar. Mas você só pode ajudar aqueles que se ajudam. Godzilla percebeu que não poderia salvar todos os monstros do mundo. Precisavam tomar suas decisões sozinhos.
Fez uma anotação mental de que deveria andar com folhetos dos 12 Passos com ele, a partir de agora.
Mais tarde ligou para seu orientador e contou sobre seu dia miserável. Que queria voltar a queimar edifícios e brigar com a grande tartaruga.
Reptilicus disse que era assim mesmo. Que ele teria dias como aquele.
Uma vez um monstro sempre um monstro. Mas que ele era um monstro recuperado. Levava a vida um dia de cada vez. Era o único jeito de ser feliz. Você não podia queimar e matar e mastigar humanos e suas criações, sem pagar o preço da culpa, sem ser alvo da artilharia.
Godzilla agradeceu Reptilicus e relaxou.
Sentiu-se melhor por algum tempo, mas por dentro ele pensava o quanto de culpa ele guardava em seu coração.
Pensou que talvez fosse a artilharia e os disparos de foguetes o que ele realmente detestava, não a culpa.

Cinco: Saindo dos trilhos

Aconteceu de uma hora para outra. Voltava do trabalho quando viu uma pequena casa de cachorro, com um cachorro junto da entrada. Ninguém por perto. O cachorro parecia velho, estava preso por uma corrente. Um cachorro qualquer, vagabundo. A tigela de água vazia.
O cachorro vivia uma vida miserável. Preso. Entediado. Sem água.
Godzilla saltou sobre a casinha e esmagou o cachorro. Queimou o que restou do cachorro e da casinha. Pulou sobre os restos carbonizados. Cinzas negras e cachorro queimado entre seus dedos o lembraram dos velhos tempos.
Rápido deixou o local, ninguém o vira. Sentiu-se mal. Ligou para Reptilicus e ouviu da secretária eletrônica:
‘Não estou em casa agora, por favor deixe sua mensagem e eu ligarei de volta’.
A máquina bipou. Godzilla disse: ‘Socorro'. 
 
Seis: O orientador

A casa de cachorro ficou em sua cabeça por todo o dia seguinte. Enquanto trabalhava, pensava em como o cachorro queimara, como a casinha se partira em pedaços. Pensou na dança que fez sobre as cinzas.
Aquele dia se arrastou como uma eternidade. Pensou que após o trabalho, talvez pudesse achar outra casa de cachorro, outro cachorro.
No caminho de casa, manteve-se atento, mas nada de casas de cachorro ou mesmo cachorros.
Em casa, uma luz piscava em sua secretária eletrônica. Uma mensagem de Reptilicus, que dizia: ‘Me ligue.’
Godzilla ligou e disse: ‘Reptilicus! Perdoe-me! Eu pequei.’

Sete: Desilusão e desapontamento


A conversa com Reptilicus não ajudara muito. Godzilla reduziu a pedacinhos todos os folhetos do programa dos doze passos. Limpou o traseiro com alguns e os atirou pela janela. Os que restaram, colocou na pia e queimou. Queimou a mesa de café e uma cadeira e quando se deu conta do que tinha feito, sentiu-se pior. Sabia que a proprietária iria esperar que ele repusesse os móveis. Ligou o radio e chorou na cama ao ouvir uma estação de antigos sucessos.
Dormiu enquanto “Martha and the Vandellas” cantavam "Heat Wave" (Onda de calor). 

Oito: Desempregado

Godzilla sonhava que o Deus escamoso tinha surgido para ele, cuspindo fogo. Disse que tinha vergonha de Godzilla. Disse que esperava mais dele. Godzilla acordou, afogando-se em seu suor. Estava só. Sentiu-se culpado. Tinha vaga lembrança de ter acordado e saído por ai, pela cidade,queimando e destruindo. Estava cansado, mas não se lembrava de tudo que havia feito. Talvez lesse a respeito nos jornais sobre isso. Cheirava a madeira carbonizada e plástico derretido. Havia uma coisa gosmenta entre seus dedos e algo lhe dizia que não era sabão.
Queria se matar. Foi buscar sua arma, mas estava bêbado demais para encontrá-la. Caiu ao chão. Sonhou com o demônio desta vez. Parecia-se com o Deus, exceto por ter uma só sobrancelha que se esticava sobre ambos os olhos. O demônio disse que tinha vindo atrás dele.
Godzilla lutou e rugiu. Sonhou que trocava socos com o demônio e que seu fogo não fazia efeito nele. Acordou tarde no dia seguinte. Lembrava-se do sonho. Não dava para trabalhar daquele jeito e dormiu o resto do dia. De noite leu sobre ele nos jornais. Realmente fizera alguns estragos, queimando parte da cidade. Havia uma foto bem clara dele, arrancando a cabeça de uma mulher.
Recebeu uma ligação de seu gerente naquela noite. Disse que Godzilla estava demitido.

Nove: Sedução


No dia seguinte apareceram os humanos. vestiam ternos pretos e sapatos polidos e mostraram credenciais. Estavam armados também.
Um deles disse: ‘Você é um problema. Nosso governo quer mandá-lo de volta ao Japão.’
‘Eles me odeiam por lá. Eu acabei com Tóquio!’ disse Godzilla. 
 
‘Você também não tem se dado bem por aqui. Por sorte você queimou uma parte menos privilegiada da cidade, ou você estaria ferrado. Isso dito, temos uma proposta de trabalho para você.’
‘Qual?’
‘Você coça nossas costas e nós coçamos as suas.’
Então o homem contou o que tinha em mente.

Dez: Escolhas

Godzilla mal dormiu naquela noite. Levantou-se e brincou de esmagar seu pequeno toca-discos. Dançou pela sala como se estivesse se divertindo, mas não estava.. Foi ao Centro Recreacional Grande Monstro.
Encontrou Kong num banco, despindo uma de suas Barbies, e tocando entre as pernas, a vagina que desenhara com caneta azul. Agora ele desenhava pêlos pubianos nela.
Godzilla achava que talvez Kong pudesse fazer o trabalho por ele.
Por Deus, você não quer acabar como Kong. Completamente fora deste mundo.
Por outro lado, se ele tivesse algumas bonecas para queimar, serviria para acalmá-lo.
Não. Depois de experimentar a coisa de verdade, para que serviria uma Barbie? Era como cerveja sem álcool. Como aqueles escombros nos fundos. Cerveja sem álcool. A fundição. O programa de doze passos. Tudo cerveja sem álcool.

Onze: Trabalhando para o governo

Godzilla ligou para os desgraçados do governo.
‘Certo! Eu farei.’
‘Ótimo. Achávamos que toparia. Olhe em sua caixa de correio. O mapa e as instruções estão lá dentro.’
Godzilla saiu de casa e foi conferir. Havia um envelope pardo com instruções dentro. Dizia:
‘Queime todos os pontos que estão no mapa. Quando terminar com estes, encontrará outros. Apenas tenha certeza de que ninguém irá escapar. Até o último homem, mulher e criança.’ 

Godzilla abriu o mapa. Haviam vários pontos marcados de vermelho. Sob as marcações ele podia ler: ‘Cidade dos Crioulos’, ‘Vila dos Amarelos’, ‘Enclave do lixo branco’, ‘Bairro das piranhas’. ‘Monte de Democratas’.
Godzilla entendeu o que poderia fazer. Poderia ser espontâneo. Queimar sem culpa. Esmagar sem culpa. E não somente isso, eles haviam lhe mandado um cheque.
Ele fora contratado por sua cidade adotiva para limpar a sujeira, ou era como eles viam.

Doze: O passo final


Godzilla parou perto do primeiro lugar da lista: ‘Cidade dos crioulos’
Viu crianças brincando nas ruas. Cães. Pessoas olhando para ele, imaginando o que ele fazia ali.
Godzilla derrepente sentiu algo dentro de si. Sabia que estava sendo usado. Virou-se e saiu dali. Foi em direção a área da cidade onde ficavam os prédios do governo.
Começou pela mansão do governador.
Estava fora de controle. A artilharia caiu encima dele, mas de nada serviu.
Estava enlouquecido. Como nos velhos tempos.
Reptilicus apareceu com um megafone, tentando acalmar Godzilla, mas ele não o ouvia. Queimava o topo do prédio da prefeitura, descendo e queimando e mais, até o chão.
Kong apareceu e o saudou. Kong então atirou longe o andador e passou a destruir tudo ao redor e depois subiu no prédio do governo. Balas zuniam à volta do macaco gigante.
Godzilla ficou olhando Kong alcançar o topo, segurando-se com uma das mãos enquanto balançava uma boneca Barbie com a outra. Kong então colocou a Barbie entre os dentes e do bolso tirou um Ken despido. Kong havia feito um tipo de pênis em Ken e gritava ‘É isso ai! É isso ai! Eu sou de Antes e Depois de Cristo, seus filhosdaputa!’ 
 
Jatos apareceram e lançaram um ataque contra Kong, que levou um míssil bem entre os dentes.
Barbie, dentes e pedaços de cérebro encheram o céu cinzento. Kong caiu.
Gorgo saiu do meio da multidão e debruçado sobre o macaco, chorando, pegou-o nos braços.
A mão de Kong lentamente se abriu, revelando Ken e seu ‘pinto’ quebrado.
A tartaruga voadora apareceu e Kong arrancou o topo do prédio e bateu em Gamera com ele.
Até os policiais e o exército aplaudiram.
Godzilla bateu, bateu e bateu na tartaruga, espalhando pedaços de carne de tartaruga por toda parte, igual a quando se sobreaquece um poodle em um forno de microondas.
Alguns pedestres recolheram nacos da carne e levaram para casa para assar, por que havia um boato que dizia que tinha gosto de galinha.
Godzilla levou três foguetes no peito, cambaleou e tombou. Os tanques o cercaram.
Godzilla abriu sua boca sangrenta e riu. Pensou, se a coisa não se resolver aqui, terei que acabar com os negros, com os amarelos, o lixo branco e os homossexuais.
Pro inferno com o programa dos doze passos. Pro inferno com a humanidade.
Então Godzilla morreu e fez a maior nojeira na rua.
Os militares saíram de perto, pisando na ponta dos pés e segurando seus narizes.
Mais tarde Gorgo reclamaria o corpo de Kong. 

Reptilicus, entrevistado pelos repórteres da tevê, declarou:
‘Zilla quase conseguiu, caramba! Quase! Se ele tivesse conseguido completar o programa, ele ficaria ok. Mas a pressão da sociedade foi demais pra ele. Você não pode culpá-lo pelo que a sociedade fez com ele.’
No caminho de casa, Reptilicus lembrou dos prédios em chamas. Dos disparos das armas. Igualzinho aos velhos tempo, quando ele, Zilla, Kong e a idiota da tartaruga eram jovens.
Reptilicus pensou em Kong, balançando o boneco Ken, com Barbie entre os dentes.
Lembrou de Godzilla morrendo de rir.
Um monte de velhos sentimentos afloraram em Reptilicus. Era duro lutar contra isso.
Encontrou um local remoto e uma casa às escuras e urinou pela janela esquecida aberta, então foi para casa.

Joe R.Landscape, 'Godzilla's twelve step program', 1994.
Originalmente publicada na coleção ‘Writer of the Purple Rage’.

* Retirado do blog: Capacitor Fantástico

terça-feira

Final para um conto fantástico * I.A. Ireland

— QUE ESTRANHO! — disse a garota, avançando com cautela. — Que porta mais pesada, meu Deus! — E, ao falar, tocou-a e a porta acabou fechando-se de um golpe.
— Deus do céu! — disse o homem. — Não é que não tem maçaneta do lado de dentro? Agora estamos os dois trancados!
— Os dois, não — disse a garota. — Só você.
E passou através da porta e desapareceu.


***

I.A. Ireland

Decálogo do perfeito contista * Horacio Quiroga

I - Crê em um mestre - Poe, Maupassant, Kipling, Tchecov - como em Deus.

II - Crê que tua arte é um cume inacessível. Não sonhes alcançá-la. Quando puderes fazê-lo, conseguirás sem ao menos perceber.

III - Resiste o quando puderes à imitação, mas imite se a demanda for demasiado forte. Mais que nenhuma outra coisa, o desenvolvimento da personalidade requer muita paciência.

IV - Tem fé cega não em tua capacidade para o triunfo, mas no ardor com que o desejas. Ama tua arte como à tua namorada, de todo o coração.

V - Não comeces a escrever sem saber desde a primeira linha aonde queres chegar. Em um conto bem-feito, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância das três últimas.

VI - Se quiseres expressar com exatidão esta circunstância: "Desde o rio soprava o vento frio", não há na língua humana mais palavras que as apontadas para expressá-la. Uma vez dono de tuas palavras, não te preocupes em observar se apresentam consonância ou dissonância entre si.

VII - Não adjetives sem necessidade. Inúteis serão quantos apêndices coloridos aderires a um substantivo fraco. Se encontrares o perfeito, somente ele terá uma cor incomparável. Mas é preciso encontrá-lo.

VIII - Pega teus personagens pela mão e conduza-os firmemente até o fim, sem ver nada além do caminho que traçastes para eles. Não te distraias vendo o que a eles não importa ver. Não abuses do leitor. Um conto é um romance do qual se retirou as aparas. Tenha isso como uma verdade absoluta, ainda que não o seja.

IX - Não escrevas sob domínio da emoção. Deixe-a morrer e evoque-a em seguida. Se fores então capaz de revivê-la tal qual a sentiu, terás alcançado na arte a metade do caminho.

X - Não penses em teus amigos ao escrever, nem na impressão que causará tua história. Escreva como se teu relato não interessasse a mais ninguém senão ao pequeno mundo de teus personagens, dos quais poderias ter sido um. Não há outro modo de dar vida ao conto. 
 
Horacio Quiroga

Philimor, alma de criança * Witold Gombrowicz

Em fins do século XVIII, um camponês parisiense teve uma criança; a criança, por sua vez, teve uma criança, que teve uma criança por sua vez. Depois, houve outra criança... e a última criança, que se tornara campeã mundial, disputava, certo dia, nas quadras do Racing Club de Paris, em ambiente tenso e sob torrentes de aplausos, uma partida de tênis.

No entanto, (oh, que traições horríveis nos reserva a vida!) um certo coronel dos zuavos, que estava sentado na tribuna lateral, tomou-se de inveja pelo jogo assombroso e impecável dos dois campeões. E, subitamente, querendo mostrar sua capacidade aos seis mil espectadores presentes, — e também à amiguinha que o acompanhava — sacou do revólver e deu um tiro na bola, no momento em que ela voava entre as duas raquetes. A bola estourou e caiu. Privados da bola, os campeões continuaram, por algum tempo, a dar raquetadas no ar, mas, exasperados pelo absurdo daquele movimento sem sentido, caíram nos braços um do outro. Uma torrente de aplausos sacudiu a assistência.

O caso poderia ter-se resumido nisso, é claro. Mas, circunstância imprevista, o coronel, em sua excitação, não prestou atenção suficiente (oh, como é preciso ser atento!) aos espectadores que estavam sentados na tribuna em frente. Imaginara, não se sabe por que, que o projétil, depois de ter atravessado a bola de tênis, terminaria sua trajetória; mas infelizmente isso não aconteceu... e, prosseguindo adiante, a bala atingiu o pescoço de um espectador. O sangue jorrou da artéria seccionada. A mulher do ferido quis atirar-se sobre o coronel e arrancar-lhe o revólver, mas vendo que isso seria impossível, pois estava cercada pela multidão, contentou-se em esbofetear seu vizinho da direita. Isso porque não havia outro meio de expandir sua indignação e porque, segundo uma lógica muito feminina, achava (no mais íntimo recanto de seu subconsciente) que, sendo mulher, podia permitir-se qualquer coisa. 

Mas, evidentemente, as coisas não se desenrolaram como ela imaginara. Pois o esbofeteado (ah, como nossos cálculos são incertos e imprevisíveis nossos destinos!) era nada mais nada menos que um epilético em estado de latência. Com o choque do bofetão, o infeliz jorrou de si mesmo um gêiser. A pobre mulher viu-se entre dois homens, um dos quais cuspia sangue e o outro espuma. A multidão explodiu numa torrente de aplausos.

Foi então que, num acesso de pânico, um senhor que estava sentado ali perto atirou-se em cima da cabeça de uma senhora, sentada mais embaixo. Esta se levantou, tomou impulso e pulou para a quadra, carregando-o nas costas, em doida corrida. A multidão explodiu numa torrente de aplausos. E tudo poderia ter-se resumido nisso. Mas aconteceu ainda (tudo! seria preciso prever tudo, pensar em tudo!) que a alguns passos dali estava sentado um pobre-diabo, um obscuro sonhador aposentado que, havia anos, a cada vez que assistia a um espetáculo público, ardia de vontade de pular em cima da cabeça das pessoas sentadas mais embaixo, e só a muito custo conseguia controlar-se. Estimulado pelo exemplo, atirou-se sem mais tardar sobre seu vizinho de baixo que (era uma funcionariazinha chegada havia pouco tempo de Tanger) pensou que era assim mesmo, que era moda, e que essa era a maneira certa de comportar-se nos meios elegantes... Assim sendo, atirou-se também para a quadra, atenta a que seus movimentos não a traíssem, denotando alguma timidez.  

O setor mais culto do público pôs-se a aplaudir diplomaticamente, para dissimular o escândalo aos olhos dos representantes das embaixadas e delegações estrangeiras. Mas deu-se um mal-entendido, pois outros espectadores menos cultos tomaram esses aplausos como sinal de aprovação... e cada um pôs-se a cavalgar sua dama. Os estrangeiros demonstravam espanto crescente. Que saída restava, portanto, a gente tão fina, diante de tais circunstâncias? Para dissimular o escândalo, puseram-se também eles a cavalgar suas damas.

E tudo poderia ter-se resumido nisso, quase que certamente. Mas então, um certo Marquês de Philimor, sentado na tribuna de honra ao lado de sua esposa e da família desta, achou-se na obrigação de portar-se como um cavalheiro.

E, vestido num terno claro de verão, surgiu no centro da quadra, pálido porém decidido, perguntando em tom glacial se alguém, e quem era esse alguém, desejava ofender sua mulher, a Marquesa de Philimor. E atirou à multidão um punhado de cartões de visita, nos quais estava gravado: "Philippe de Philimor". (Ah! Como é preciso prestar atenção, como a vida é difícil e perigosa!) Fez-se um silêncio mortal.

Subitamente, pelo menos trinta e seis senhores, montados em mulheres de raça, de finos jarretes, aproximaram-se da Marquesa, a passo, com a intenção de ofendê-la, para poderem sentir-se tão cavalheiros quanto o Marquês, seu esposo. Mas a Marquesa (oh, quão louca é a existência!), apavorada, deu à luz — e ouviu-se, aos pés do Marquês, sob os cascos das mulheres que relinchavam, um vagido de criança!

O Marquês, subitamente apanhado em flagrante criancice, em terrível, completa infantilidade, quando até o presente momento agira de modo muito amadurecido, como um cavalheiro que era, partiu, envergonhado, enquanto os espectadores explodiam numa torrente de aplausos.

***

Witold Gombrowicz

tradução de Álvaro Cabral

Poemeu - A superstição é imortal * Millôr Fernandes

Quando eu era bem menino
Tinha fadas no jardim
No porão um monstro albino
E uma bruxa bem ruim.

Cada lâmpada tinha um gênio
Que virava ano em milênio
E, coisa bem mais perversa,
Sapo em rei e vice-versa.

Tinha Ciclope,Centauro,
Autósito, Hidra e megera,
Fênix, Grifo, Minotauro,
Magia, pasmo e quimera.

Mas aí surgiram no horizonte
Além de Custer e seus confederados
A tecnologia mastodonte
Com tecnologistas bem safados
Esses homens da ciência me provaram
Que duendes, bruxas e omacéfalos
Eram produtos imbecis de meu encéfalo.
Nunca existiram e nunca existirão:
uma decepção!

Mas continuo inocente, acho.
Ou burro, bobo, ou borracho.
Pois toda noite eu vejo todo dia
Tudo que é estranho, raro, ou anomalia:
Padres sibilas
Hidras estruturalistas
Ministros gorilas
Avis raras feministas
Políticos de duas cabeças
Unicórnios marxistas
Antropólogas travessas
Mactocerontes psicanalistas
Cisnes pretos arquitetos
Economistas sereias
Democratas por decreto
E beldades feias
Que invadem a minha caverna
E me matam de aflição
Saindo da lanterna
Da televisão.

Millôr Fernandes

Três histórias do interior * JOSÉ CÂNDIDO CARVALHO

ANÃO NO VENTO DAS QUATRO HORAS DA TARDE

E por causa de uma discussão sobre coisas de zepelim e assentador de moça, o anão Azevedinho Codó levou, de um certo Chico Pereira, pescoção de tal modo peçonhento que atravessou de foguete toda a cidade de Guarus e sumiu para o lado do Piauí numa poeirinha de não ser mais visto. No meio da semana, o delegado Xexé Barroso,encarregado de desvendar o paradeiro de Azevedinho, recebeu do seu colega do Palmeiral do Livramento o seguinte telegrama:

PASSOU PELA RUA DO COMÉRCIO UM NANICO VOANDO DE PASSARINHO, QUE SÓ PODE SER O PROCURADO AZEVEDINHO CODÓ. NO MEU FRACO PENSAR, O PESCOÇÃO MINISTRADO AINDA TEM CARVÃO PARA MAIS DOIS DIAS, PELO QUE TELEGRAFEI PARA LAGOINHAS DE MODO QUE A AUTORIDADE COMPETENTE ESPERE O INDIGITADO ANÃO NO CAMPO DE POUSO, ONDE DEVE CHEGAR NO VENTO DAS QUATRO HORAS DA TARDE SE NÃO SOFRER ATRASO NO PESCOÇÃO. SÓ QUERO SABER SE A GENTE DEVOLVE AZEVEDINHO CODÓ POR VIA MANUAL OU PELA ESTRADA DE RODAGEM. 

DE COMO O TABELIÃO SÁ BARBALHO LAVROU A ATA DO DESCOBRIMENTO DAS AMÉRICAS

E de repente, na sala do Cartório Raul Pimenta, o tabelião Ludovico de Sá Barbalho estancou a pena no meio de uma lavratura e disse com voz de mar alto:
- Comunico e participo que de hoje em diante não sou mais o tabelião juramentado de Crubixais do Rio Novo. Sou Cristóvão Colombo pela vontade de deus e do rei. Amanhã lavrarei a competente ata do descobrimento das Américas.
Estava maluco. E no dia seguinte, que era domingo, toda Crubixais do Rio Novo viu o tabelião Barbalho sair em passo de 12 de Outubro e ganhar a Rua das Flores. Levava embaixo do braço uma luneta e na cabeça um chapéu de almirante. Quando chegou à Praça da Matriz, gritou em feitio de escritura pública:
- Ao mar!
Como não havia mar em Crubixais, Barbalho navegou mesmo em seco e em seco ancorou a caravela na porta da Barbearia Central. Os filhos, com seu compadre Juquinha Azambuja na frente, correram para desencalhar o barco do velho Ludovico de Sá Barbalho. E mansamente bordejaram pelo fundo da Praça da Matriz de modo a colocar o tabelião em águas de casa. Na soleira da porta, antes de entrar, Barbalho voltou a gritar:
- Sou Cristóvão Colombo vitalício do que não abro mão nem faço acordo! 
Loucura pega de galho. E tanto pega que houve um derramamento de doido em Crubixais. Um era pajem do rei, outro nobre da corte e outro ouvidor-geral. Quando o Dr. Sabugosa Leitão, circunspecto juiz da comarca, que não ria nem brincava com ninguém, veio de Rui Barbosa, careca e de pincenê, o tabelião Barbalho deixou no mesmo instante de ser Cristóvão Colombo. Reuniu o pessoal graúdo e avisou:
- Deu tanto maluco em Crubixais que alguém, meus senhores, deve ser o juiz. Comunico e participo que de agora em diante sou o Doutor Sabugosa Leitão.
E desandou a despachar os processos em pauta. Com muito acerto e competência. 

TATÃO, O ESQUARTEJADOR

Era domingo que pita cachimbo e Tatão Chaves aproveitou para pedir Lili Mercedes, mestra de letras, em casamento. A cidadezinha de Monte Alegre, sabedora da novidade, botou a cabeça de fora para presenciar Tatão em cima das botinas de lustro e por baixo das panos engomados. Para avivar a coragem, Tatão bebeu, no Bar da Ponte, meio dedo de licor, coisinha de aligeirar a língua e aromar a boca. Como achasse o licor educado demais, mandou cruzar a bebidinha com cachaça de fundo de garrafa.
Disse recomendativo:
- Daquele parati mimoso que até parece flor de jardim.
De talagada em talagada Tatão perdeu a mira da cabeça. Embaralhou o pedido de casamento com negócio de disco-voador, imposto de renda e busto de moça. A essa altura, gravata desabada e camisa fora da calça, Tatão preveniu:
- Sou o maior dedilhador dos desabotoados das meninas já aparecido em Monte Alegre. Sou Tatão Chupeta!
Gritava que era monarquista, que era a favor da escravidão e que o prefeito de Monte Alegre não passava de uma perfeita e acabada mula-sem-cabeça. E para arrematar, ganhando a porta do Bar da Ponte, garantiu:
- Só queria que aparecesse neste justo instante um boi cornudo para Tatão esfarinhar o chifre do sem-vergonha a bofetada!
Nisso, um boizinho desgarrado apontou na esquina da Rua do Comércio. Tatão, cumprindo a promessa, armou o maior soco do mundo. E atrás do soco saiu Tatão, atravessou a Praça 13 de Maio, entrou no Mercado Municipal, desmontou duas barracas, esfarelou um comício de tomates e só parou no Açougue Primavera. E meio adernado sobre um quarto de boi que sangrava em cima do balcão: .
- Soco de Tatão é pior que canhão de guerra. Mata e esquarteja! 

***
José Cândido Carvalho


Porcaloca * Carlo Manzoni

"Desculpe, foi o senhor que telefonou para que eu viesse amputar a sua perna?

"Eu? O que é isso? Nem sonhando!"

"Mas o senhor se chama Dante del Torro, não é? Faz meia-hora, um fulano me telefonou para que viesse alguém que lhe cortasse uma perna."

"Eu não telefonei. Deve ser outro Dante del Torro."

"Não, não... O endereço que me deram foi este. E neste endereço só há um Dante del Torro, que é o senhor. Um parente seu deve ter telefonado."

"Impossível. Hortênsia, por acaso você telefonou para que viessem cortar a minha perna?"

"Eu, não. Telefonei para o mercadinho pedindo que mandasse marmelada."

"Aí está, viu? Se o senhor tiver um doce de marmelada..."

"Como posso ter um doce de marmelada? Eu trouxe uma serra, pois quem me telefonou me pediu que trouxesse a serra, uma vez que na casa não existia uma serra."

"Engana-se. Eu tenho uma serra."

"Mas é evidente que a sua não deve servir para cortar uma perna."

"Como não? É igual a sua."

"Mas se é igual a minha, por que me levaram ao incômodo de trazer outra serra?"

"Ó Dante, deixa de discussão, homem de Deus. Deixa logo cortar esta maldita perna, mande-o embora e acabe logo com isso."

"Desculpa, Hortênsia, mas por que haverei eu de mandar cortar a minha perna quando não fui eu que telefonei? Tenho ou não tenho razão?"

"O senhor tem razão. Mas o que é que eu faço agora? Alguém telefona, eu compro uma serra nova, gasto meu dinheiro, venho até aqui e acabo perdendo o meu dia a troco de nada. O senhor também deve me compreender..."

"Bem, com boa vontade sempre se pode encontrar uma maneira de se chegar a um acordo. Tampouco ele, coitado, tem culpa. Escuta, Dante, você devia de algum modo concordar com ele. Por que não deixa que ele ampute um dedo seu?"

"Epa! Pára lá!, minha senhora: um dedo não é o suficiente!"

"Antes isso de que nada. Compreenda: é apenas para agradá-lo, porque eu poderia mandá-lo embora de mãos abanando, mesmo porque não fui eu quem o chamou."

"Bem, nesse caso, dois dedos."

"Ou um ou nada."

"Está bem, como quiser. Mas nesse caso, precisa que seja um polegar."

"Vá lá, vá lá... Que seja o polegar, já que me coloca nesta posição, está bem? E que seja esta a última vez, ouviu? Da próxima vez me telefone de volta para confirmar a chamada... Se o senhor não fosse um cara tão simpático... Pode... Ai!... porc... ahhh....vá aos poucos, isso, aos pouquinhos... Uuuuh!"

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Carlo Manzoni

A pata do macaco - W.W. Jacobs


I

Lá fora, a noite estava fria e úmida, mas na pequena sala de estar de Laburnam Villa, as venezianas estavam fechadas e o fogo ardia vivamente. Pai e filho jogavam xadrez, o primeiro, para quem o jogo envolvia mudanças bruscas, arriscava o rei em lances súbitos e desnecessários que arrancavam até mesmo comentários da senhora de cabelos brancos a tricotar placidamente ao lado da lareira.

“Ouça o vento”, disse o sr. White, que, ao verificar tarde demais um lance fatal, estava benevolamente desejoso de impedir que seu filho o visse.
“Estou ouvindo”, disse este último, examinando implacavelmente o tabuleiro enquanto estendia a mão. “Xeque.”
“Acho difícil ele vir esta noite”, disse seu pai, com as mãos pousadas sobre o tabuleiro.
“Mate”, retrucou o filho.
“Esse é o mal de viver em lugar tão remoto”, vociferou sr. White, com uma veemência súbita e involuntária; “de todos os lugares abomináveis, lamacentos e remotos para morar, este é o pior. A trilha é um lamaçal, e a estrada, uma torrente. Não sei o que as pessoas estão pensando. Imagino que, porque apenas duas casas no caminho estão alugadas, não há motivo para se importar”.
“Deixe estar, querido”, disse sua mulher, com brandura; “talvez na próxima você ganhe.”
O sr. White levantou os olhos bruscamente, a tempo de interceptar um olhar de entendimento entre mãe e filho. As palavras detiveram-se em seus lábios, e ele escondeu um sorriso de culpa na barba rala e grisalha.
“Lá vem ele”, disse Herbert White, enquanto o portão bateu e pisadas sonoras aproximavam-se da porta.

O velho senhor levantou-se pressuroso e, quando abriu a porta, ouvi-ram-se suas expressões de compaixão dirigidas ao recém-chegado. Também este exprimiu suas queixas, e a sra. White disse: “Ora, vamos!” e tossiu delicadamente quando seu marido entrou na sala, seguido por um homem corpulento e alto, com olhos de botão e face rubicunda. 
 
“Major Morris”, disse ele, apresentando-o.
O sargento-major cumprimentou-os e, sentando-se no lugar oferecido, ao lado da lareira, observou satisfeito enquanto seu anfitrião pegou uísque e copos e pôs uma pequena chaleira no fogo.
Ao terceiro copo, seus olhos tornaram-se mais brilhantes e ele começou a falar, com o pequeno círculo familiar a olhar com vivo interesse o visitante de lugares distantes, enquanto ele endireitava seus ombros largos na cadeira e falava de estranhas paisagens e feitos audazes, de guerras, pestes e povos estranhos.
“Vinte e um anos disso”, disse o sr. White, acenando para a mulher e o filho. “Quando ele se foi, era um jovem franzino no armazém. E ei-lo ago-ra.”
“Ele não parece ter se saído mal”, disse a sra. White educadamente.
“Eu também gostaria de ir à Índia”, disse o velho senhor, “somente para dar uma olhada, entendam-me.”
“Você está melhor aqui”, disse o major, balançando a cabeça. Ele depôs o copo vazio e, dando um suspiro leve, balançou-a novamente.
“Eu gostaria de ver aqueles templos antigos, os faquires e os malabaristas”, disse o velho senhor. “Como foi aquilo que você começou a me contar no outro dia, sobre a pata de um macaco ou algo assim, Morris?”
“Nada, não”, disse apressadamente o soldado. “Pelo menos nada de importante.”
“Pata de macaco?” indagou a sra. White, curiosa.
“Bem, é apenas um pouco daquilo que vocês poderiam chamar de mágica, talvez”, disse o major, bruscamente.
Seus três ouvintes inclinaram-se para frente, curiosos. O visitante, absorto, colocou seu copo vazio na boca e então baixou-o novamente. Seu anfitrião serviu-lhe mais uma dose.  

“Olhando-a”, disse o major, procurando em seu bolso, “é apenas uma pata pequena e comum, mumificada.”
Ele tirou algo do bolso e estendeu-o. A sra. White recuou com uma ca-reta, mas seu filho, pegando-a, examinou-a com interesse.
“E o que há de especial nela?”, indagou o sr. White ao tomá-la de seu filho e, depois de examiná-la, colocou-a sobre a mesa.
“Um velho faquir lançou-lhe um feitiço”, disse o major, “um homem muito santo. Ele queria mostrar que o destino governa a vida das pessoas e que aqueles que se interpunham entre eles se arrependiam. Ele lançou sobre essa pata um feitiço para que três diferentes homens pudessem lhe fazer três pedidos.”
Sua atitude era tão impressionante que os ouvintes perceberam as suas alegres risadas soarem de forma um tanto estridente.
“Bem, e por que o senhor não pediu os três?”, disse sagazmente Herbert White.
O soldado olhou para ele como costuma alguém de meia-idade olhar para a juventude presunçosa. “Eu pedi”, disse ele calmamente, e seu rosto enodoado ficou branco.
“E você obteve de verdade os três pedidos?”, perguntou a sra. White.
“Obtive”, disse o major, e seu copo bateu em seus dentes fortes.
“E ninguém mais fez pedidos?”, indagou a velha senhora.
“O primeiro homem obteve, sim, os três pedidos”, foi a resposta.
Seu tom de voz era tão solene que o silêncio caiu sobre o grupo.
“Se seus três pedidos foram concedidos, ela nada vale para você agora, Morris”, disse por fim o velho senhor. “Por que a guarda?” 
 
O soldado balançou a cabeça. “Capricho, acho eu”, disse ele vagarosa-mente. “Eu pretendia vendê-la, mas acho que não o farei. Ela já causou muito mal. Além disso, ninguém a comprará. Alguns pensam que é um conto de fadas, e aqueles que acreditam nela querem experimentá-la primeiro e pagar depois.”
“Se você pudesse fazer outros três pedidos”, disse o velho senhor, fitando-o com um olhar penetrante, “você os obteria?”
“Não sei”, disse o outro. “Não sei.”
Ele pegou a pata e, balançando-a entre o indicador e o polegar, subitamente jogou-a no fogo. White, com um leve grito inclinou-se e conseguiu arrebatá-la do fogo.
“É melhor deixá-la queimar”, disse o soldado solenemente.
“Se você não a quer, Morris”, disse o velho, “dê-a para mim.”
“Não”, disse seu amigo, teimosamente. “Eu a atirei ao fogo. Se você guardá-la, não me culpe pelo que possa acontecer. Atire-a de novo no fogo, como um homem sensato.”
O outro balançou a cabeça e examinou atentamente sua nova propriedade. “Como você o faz?”, indagou.
“Segure-a na mão direita e faça seu pedido em voz alta”, disse o major, “mas aviso-o das conseqüências.”
“Soa como as Mil e uma noites” , disse a sra. White, que se levantou e começou a pôr a mesa para a ceia.
“Você não acha que poderia desejar quatro pares de mãos para mim?”
Seu marido tirou o talismã do bolso e então todos os três caíram na gargalhada quando o major, com um olhar assustado no rosto pegou-o pelo braço.
“Se você for fazer um pedido”, disse ele rispidamente, “que seja alguma coisa sensata.”
O sr. White colocou-a novamente no bolso e, posicionando as cadeiras, conduziu o amigo à mesa.  

Ocupados com a ceia, o talismã foi deixado de lado e depois os três sentaram-se para ouvir, enfeitiçados, uma segunda parte das aventuras do soldado na Índia.
“Se a história sobre a pata do macaco não é mais verdadeira do que as que ele acabou de nos contar”, disse Herbert, assim que a porta se fechou atrás de seu convidado, a tempo dele tomar o último trem, “não deveremos lhe dar muito crédito.”
“Você lhe deu algum dinheiro por ela, papai?”, indagou a sra. White, fitando seu marido.
“Uns trocados”, disse ele, com um leve rubor. “Ele não queria, mas eu o fiz aceitar. E ele insistiu novamente para que eu a jogue fora.”
“Com razão”, disse Herbert, fingindo medo. “Ora, vamos ficar ricos, famosos e felizes. Quero ser imperador, papai, para começar; e o senhor não será mais controlado pela mamãe.”
Ele correu em volta da mesa, perseguido pela difamada sra. White, armada com uma daquelas peças que se usam para proteger o espaldar de poltronas. O sr. White tirou do bolso a pata e fitou-a, indeciso. “Não sei o que pedir, essa é a verdade”, disse ele lentamente. “Parece que tenho tudo que quero.”
“Se o senhor saldasse a casa, ficaria muito feliz, não é?”, disse Herbert, com a mão em seu ombro. “Bem, peça duzentas libras e pronto.”
Seu pai, com um sorriso envergonhado por sua própria credulidade, levantou o talismã enquanto seu filho, com uma expressão solene, um tanto contrariada por uma piscadela para a mãe, sentou-se ao piano e tocou alguns acordes grandiosos.

“Desejo duzentas libras”, disse o velho senhor em voz clara.
Um belo acorde do piano acompanhou as palavras, interrompido por um grito sobressaltado do velho senhor. Sua mulher e o filho correram até ele. 
“Ela moveu-se”, exclamou, com um olhar de repugnância para o objeto, que jazia no chão. “Enquanto eu fazia o pedido, ela torceu-se em minhas mãos como uma cobra.”
“Bem, não vejo o dinheiro”, disse seu filho, enquanto a pegava e colocava sobre a mesa, “e aposto que nunca verei.”
“Deve ter sido sua imaginação, pai”, disse sua mulher, fitando-o ansiosamente.
Ele balançou a cabeça. “Mas não importa; não se fez nada de mau, mas ainda assim fiquei chocado.”
Eles sentaram-se ao lado da lareira novamente, enquanto os dois homens terminavam seus cachimbos. Lá fora, o vento soprava cada vez mais forte, e o velho deu um pulo de susto quando uma porta bateu no andar superior. Um silêncio incomum e opressivo envolveu os três, até que o velho casal levantou-se para ir dormir.

“Acho que o senhor encontrará o dinheiro enrolado em um saco gran-de no meio de sua cama”, disse Herbert, quando lhe deu boa noite, “e algo terrível empoleirado no alto do guarda-roupa observando-o enquanto o senhor embolsa seus lucros mal ganhos.”
O sr. White permaneceu sozinho no escuro, observou as brasas e viu faces formarem-se nelas. A última era tão horrível e simiesca que a encarou espantado. Parecia tão vivida que provocou nele um sorriso constrangido; pegou de sobre a mesa uma vasilha com água e despejou-a no braseiro. Sem querer, tocou a pata do macaco e sentiu um leve calafrio; esfregou as mãos nas vestes e foi para a cama. 

II

Ao brilho do sol hibernai na manhã seguinte, que flutuava sobre a mesa de desjejum, Herbert riu de seus temores. Na sala havia um ar de saúde prosaica de que ela carecera na noite anterior, e a patinha suja e enrugada estava jogada no aparador com desatenção e não indicava nenhuma grande crença em suas virtudes.
“Acho que todos os velhos soldados são iguais”, disse a sra. White. “Que idéia a nossa, de ouvir tais bobagens! Como poderiam os desejos ser atendidos hoje em dia? E se pudesse, como duzentas libras poderiam trazer-lhe algum mal, pai?”
“Poderiam cair do céu em sua cabeça”, disse o frívolo Herbert.
“Morris disse que as coisas aconteceram tão naturalmente”, disse seu pai, “que se poderia, caso se quisesse, atribuí-las à coincidência.”
“Bem, não abra o pacote de dinheiro antes de minha volta”, disse Herbert enquanto levantava-se da mesa.
“Receio que ele o transformará em um homem malvado, avarento, e teremos de deserdá-lo.”
Sua mãe riu e, acompanhando-o até a porta, observou-o enquanto ele caminhava pela estrada; ao retornar à mesa do café da manhã, ela parecia divertir-se com a credulidade do marido. Mas isso não a impediu de correr para a porta quando o carteiro bateu, nem de fazer uma breve referência ao major aposentado beberrão, guando descobriu que o correio trouxera uma conta do alfaiate.
“Herbert com certeza fará mais algumas de suas observações jocosas quando chegar a casa”, disse ela, enquanto se sentavam para jantar.
“Também acho”, disse o sr. White, servindo-se de um pouco de cerveja, “mas ainda assim a coisa moveu-se em minha mão; juro que sim”.
“Você pensou que ela se moveu”, disse a velha senhora, apaziguando-o. 
 
“Digo que ela se moveu”, replicou o outro. “Não tenho dúvidas disso; eu tinha apenas... O que foi?”
Sua mulher não respondeu. Estava observando os movimentos miste-riosos de um homem lá fora, que espiava a casa de um modo indeciso e parecia tentar se decidir a entrar.
Em uma associação mental com as duzentas libras, ela notou que o estranho estava bem-vestido e usava um chapéu de seda reluzentemente novo. Por três vezes ele se deteve no portão e depois caminhou novamente. Na quarta vez, pôs a mão sobre ele e então, com decisão súbita abriu-o e caminhou pela entrada. A sra. White, no mesmo momento colocou as mãos atrás de si e, desatando apressadamente as fitas de seu avental, pôs essa peça útil de vestuário embaixo da almofada de sua cadeira.
Ela trouxe o estranho, que parecia pouco à vontade, para a sala. Ele olhou furtivamente a sra. White e ouviu com expressão preocupada quando a velha senhora se desculpou pela aparência da sala e o paletó de seu marido, uma vestimenta que ele geralmente reservava para o jardim. Então ela espe-rou tão pacientemente quanto lhe permitia seu sexo que ele declarasse a que vinha, mas ele ficou a princípio estranhamente calado.
“Eu... pediram-me que viesse”, disse ele por fim e parou, pegando uma linha de algodão de suas calças. “Venho a pedido de Maw e Meggins.”
A velha senhora assustou-se. “Aconteceu alguma coisa?” perguntou ofegante. “Aconteceu alguma coisa com Herbert? O que foi? O que foi?”
Seu marido interrompeu-a. “Ora, ora, mãe”, disse ele acudindo-lhe. “Sente-se e não tire conclusões apressadas. O senhor não trouxe más notícias, tenho certeza, senhor”, e ele olhou para o outro ansiosamente.
“Sinto muito...”, começou o visitante.
“Ele está ferido?”, inquiriu a mãe.
O visitante fez que sim com a cabeça. “Gravemente ferido”, disse ele calmamente, “mas não sente dor”.
“Graças a Deus!”, disse a velha senhora, juntando as mãos. “Graças a Deus! Graças...”  

Ela silenciou subitamente, quando o sinistro significado da afirmação se lhe revelou e ela viu a terrível confirmação de seus temores no modo como o outro lhe evitava o olhar. Ela prendeu a respiração e, virando-se para o seu lento marido, pôs sua mão velha e tremente sobre a dele. Fez-se um longo silêncio.
“Ele ficou preso na máquina”, disse o visitante por fim, em voz baixa.
“Preso na máquina”, repetiu o sr. White como que atordoado, “sim”.
Ele sentou-se, fitou com olhos vazios a janela e, tomando entre a sua a mão de sua mulher, apertou-a como costumava fazer em seus dias de namoro, quase quarenta anos atrás.
“Ele era o último filho que nos restara”, disse, virando-se amavelmente para o visitante. “É difícil.”
O outro tossiu e, levantando-se, caminhou silenciosamente até a janela. “A firma pediu-me que lhes manifestasse suas sinceras condolências por sua grande perda”, disse, sem olhar em volta. “Rogo-lhes que compreendam, sou apenas um funcionário e apenas obedeço a ordens.”
Não houve resposta; o rosto da velha senhora estava branco, os olhos arregalados e a respiração inaudível; no rosto de seu marido havia uma expressão que poderia muito bem ter sido provocada pela primeira história do major.
“Eu ia dizendo que Maw e Meggins se eximem de toda responsabilidade”, continuou o outro. “Eles não pretendem absolutamente recuar quanto a isso, mas, em consideração aos serviços de seu filho, desejam oferecer-lhes uma certa quantia como compensação.”
O sr. White deixou cair a mão de sua mulher e, levantando-se, dirigiu a seu visitante um olhar de terror. Seus lábios secos proferiram a palavra: “Quanto?” 
“Duzentas libras”, foi a resposta.
Sem se dar conta do grito de sua mulher, o velho senhor sorriu levemente, estendeu as mãos como um cego e caiu no chão como um fardo inerte.

III

No imenso cemitério novo, a algumas milhas de distância, os velhos enterraram seu morto e voltaram para uma casa envolta em sombra e silêncio. Tudo terminou tão rapidamente que de início eles mal conseguiram dar-se conta e permaneceram em um estado de expectativa, como a aguardar mais um acontecimento — um acontecimento que tornasse mais leve aquele fardo, pesado demais para velhos corações.
Mas passaram-se os dias e a expectativa deu lugar à resignação — a resignação desalentada da antiga, e, muitas vezes mal denominada apatia. Por vezes eles mal trocavam alguma palavra, pois agora nada tinham sobre o que conversar, e seus dias se arrastavam na monotonia.
Foi cerca de uma semana depois que o velho senhor, acordando subitamente à noite, estendeu a mão e viu-se sozinho. O quarto estava escuro, e o som de choro sufocado vinha da janela. Sentou-se na cama e pôs-se à escuta.
“Volte”, disse ele, com ternura. “Você vai ficar com frio.”
“Está mais frio para meu filho”, disse a velha senhora e pôs-se novamente a chorar.
O som de seus soluços morreram nos ouvidos dele. A cama estava morna, e seus olhos, pesados de sono. Ele cochilou intermitentemente e depois dormiu, até que um grito desvairado de sua mulher acordou-o de súbito.
“A pata do macaco!”, gritou ela, descontrolada. “A pata do macaco!”
Ele pulou, assustado. “Onde? Onde ela está? O que aconteceu?”
Cambaleante, ela atravessou o quarto até ele. “Eu a quero”, disse ela, calmamente. “Você a destruiu?”
“Ela está na sala de estar, na prateleira”, respondeu surpreso. “Por quê?” 
 
Ela gritava e ria ao mesmo tempo e, inclinando-se, beijou seu rosto.
“Acabei de pensar nisso”, disse ela histericamente. “Por que não pensei nisso antes? Por que você não pensou nisso?”
“Pensar no quê?”, indagou ele.
“Os outros dois pedidos”, respondeu ela rapidamente. “Fizemos apenas um.”
“E não foi o bastante?”, replicou ele com raiva.
“Não”, exclamou ela triunfantemente; “faremos mais um. Desça e pegue-a, depressa; peça que nosso filho viva novamente”.
O homem sentou-se na cama e jogou os lençóis de suas pernas trêmulas. “Deus do céu, você enlouqueceu!”, exclamou ele, estupefato.
“Pegue-a”, disse ela ofegante; “pegue-a, rápido, e faça o pedido... Oh!, meu menino, meu menino!”
O marido riscou um fósforo e acendeu a vela. “Volte para a cama”, disse ele, hesitante. “Você não sabe o que está dizendo.”
“Nosso primeiro pedido foi atendido”, disse a velha mulher, febrilmente; “por que não o segundo?”
“Uma coincidência”, gaguejou o velho.
“Vá e peça”, gritou sua mulher, tremendo de excitação.
O velho homem agitou-se, e falou para ela, a voz comovida: “Ele já está morto há dez dias e, ainda mais, há algo que não quis que você soubesse... só consegui reconhecê-lo pelas roupas. Se a cena era, então, demasiadamente horrível de se ver, o que não será agora?”
“Traga-o de volta”, gritou novamente a velha, e arrastou-o em direção à porta. “Você acha que terei medo da criança que criei?”
Ele desceu no escuro e tateou até a sala de estar e depois ao console da lareira. O talismã estava em seu lugar, pegou-o; um medo terrível de que o pedido calado trouxesse seu filho mutilado antes que pudesse fugir da sala tomou conta dele. Prendeu a respiração quando descobriu que havia perdido a direção da porta. Com a fronte coberta de suor, caminhou às apalpadelas em volta da mesa e tateou pela parede até encontrar-se no corredor estreito com aquela coisa maligna na mão. 
 
Até mesmo o rosto de sua mulher parecia mudado quando ele entrou no quarto. Estava branco e ansioso e, como ele temia, com uma expressão anormal.
Ele ficou com medo dela.
“Faça o pedido!”, gritou ela, com voz forte.
“É uma tolice e uma perversidade”, balbuciou.
“Faça o pedido”, repetiu sua mulher.
Ele levantou a mão. “Desejo que meu filho viva novamente.”
O talismã caiu ao chão, e ele olhou-o, a tremer. Depois desabou tremendo em uma poltrona, enquanto a velha, com olhos chamejantes, caminhou para a janela e levantou a persiana.
Ele ficou sentado até sentir-se enregelado, relanceando de quando em quando a figura da velha a espiar pela janela. A vela, que queimara até a borda do candeeiro de louça, lançava sombras palpitantes sobre o teto e as paredes, até que, com um lampejo maior, apagou-se. O velho, com uma sensação de indizível alívio pelo fracasso do talismã, arrastou-se de volta para a cama, e, após um minuto ou dois, a velha juntou-se a ele, silenciosa e apática.
Nenhum dos dois falou, mas puseram-se silenciosamente a ouvir o tique-taque do relógio. Um degrau da escada estalou, e um camundongo correu ruidosamente e a guinchar pela parede. A escuridão era opressiva, e após permanecer deitado por algum tempo, a reunir coragem, o marido pegou a caixa de fósforos e, acendendo um, desceu as escadas à procura de uma vela.
Ao pé da escada, o fósforo apagou-se, e ele parou para acender outro; no mesmo instante, uma batida, tão surda e furtiva que mal pôde ser ouvida, soou à porta da frente.
Os fósforos lhe caíram da mão. Ele ficou imóvel, a respiração suspensa até que a batida repetiu-se. Então ele virou-se e disparou de volta ao quarto e fechou a porta atrás de si. Uma terceira batida ressoou pela casa.
“O que foi isso?”, exclamou a velha, dando um pulo.
“Um rato”, disse o velho, com voz tremida — “um rato. Ele passou por mim na escada.”  

Sua mulher sentou-se na cama, à escuta. Uma batida forte ressoou pela casa.
“É Herbert!”, gritou ela. “É Herbert!”
“O que foi isso?”, repetiu a velha.
Ela correu para a porta, mas seu marido alcançou-a antes e, pegando-a pelo braço, abraçou-a com força.
“O que você vai fazer?”, sussurrou ele asperamente.
“É meu menino; é Herbert!”, gritou ela, debatendo-se descontroladamente. “Eu me esqueci que foi a duas milhas de distância. Por que você está me segurando? Solte-me. Preciso abrir a porta.”
“Pelo amor de Deus, não o deixe entrar”, gritou o velho a tremer.
“Você está com medo de seu próprio filho”, tentou se desvencilhar. “Solte-me. Estou indo, Herbert. Estou indo.”
Houve mais uma batida e mais outra. A velha, com um súbito repelão libertou-se e correu para fora do quarto. Seu marido seguiu-a até o patamar e chamou-a suplicante enquanto ela descia correndo a escada. Ele ouviu a corrente chacoalhar com estrépito e o ferrolho soltar-se lenta e penosamente do encaixe. Então a voz da velha senhora, tensa e ofegante:
“O ferrolho”, gritou alto. “Desça. Não consigo soltá-lo.”
Mas seu marido estava com as mãos e joelhos tateando loucamente à procura da pata. Se ao menos ele conseguisse encontrá-la antes que a coisa de fora entrasse... Uma completa bateria de batidas reverberou pela casa, e ele ouviu o arrastar de uma cadeira quando sua mulher a colocou no corredor contra a porta. Ele ouviu o ranger do ferrolho a deslizar e no mesmo instante encontrou a pata do macaco e freneticamente soprou seu terceiro e último pedido. 
 
A batida cessou subitamente, embora seus ecos ainda se ouvissem pela casa. Ele ouviu a cadeira ser retirada, e a porta, aberta. Um vento frio varreu a escada, e um longo e alto gemido de desapontamento e desespero de sua mulher deu-lhe coragem para correr em sua direção, e então para o portão. O bruxulear do lampião no lado oposto da rua iluminou uma estrada calma e deserta.


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W. W. Jacobs

A Famosa Rã Saltadora do Condado de Calavera * Mark Twain


^^


A pedido de um amigo que me escreveu do leste, procurei o velho tagarela Simon Wheeler, para me informar sobre alguém chamado Leônidas W. Smiley. Eis o resultado: concluí que o tal Leônidas W. Smiley não existia e que o meu amigo jamais havia conhecido tal pessoa. Ele apenas imaginou uma armadilha para que o velho Wheeler se lembrasse do nome do notável Jim Smiley, prevendo então que despencaria em cima de mim longas e entediantes histórias. Se foi sua intenção, acertou.

Encontrei Simon Wheeler cochilando junto ao aquecedor da velha taverna no decadente acampamento dos mineiros de Angel. Era gordo e careca, com um sorriso desenhado no semblante tranqüilo. Acordou me dando um bom dia. Então perguntei a ele sobre Leônidas W. Smiley, um reverendo e jovem ministro evangelista, que, segundo informações, havia residido no acampamento. Acrescentei ainda, ser muito importante para mim qualquer informação sobre ele.

Simon Wheeler arrastou uma cadeira para o lado da sua e me fez sentar. Iniciou então a sua monótona narrativa. Nenhuma vez sorriu ou franziu o cenho ou alterou a voz. Falou fluentemente, sempre gentil mas sem nenhum entusiasmo ou emoção. Durante toda a narrativa falou com franqueza e coração aberto, sem deixar vazar qualquer sentido de reprovação em qualquer das histórias sobre seus amigos, demonstrando claramente um grande respeito por eles, elevando-os à condição de gênios. Por mim, deixei que contasse toda a história sem interferir em nada. 
 
“Reverendo Leônidas W. hum, reverendo Le… – bem, tinha um por aqui que atendia pelo nome de Jim Smiley no inverno de 49, talvez na primavera de 50, não me lembro bem, mas o que me fez pensar que era um ou outro é por me lembrar que o grande canal não estava ainda terminado quando ele chegou no acampamento; mas era um homem dos mais diferentes que já vi, sempre disposto a apostar em qualquer coisa, se conseguisse alguém para apostar contra; e se ninguém estivesse contra, ele ficava a favor. O que ele queria mesmo era apostar. E o incrível era sua sorte, porque mesmo assim ele quase sempre estava ganhando; sempre na espreita, esperando aparecer um motivo para jogar, e como lhe contei, não importava muito para que lado ele estava; nas corridas de cavalos, terminava sempre cheio do dinheiro ou completamente duro. 
 
Se tivesse uma briga de cachorros, lá ia ele; de gatos, apostava; de galinhas, também! Amigo, se tivesse dois passarinhos pousados na cerca, queria apostar qual voaria primeiro. Até às reuniões evangélicas ele ia pensando em apostar no pastor Walker, por ser ele o melhor pregador da região. Se visse uma lagarta indo para algum lugar, ia querer apostar com você quanto tempo ela levaria para chegar no seu destino, e se dispunha a seguir o bicho até o México, se fosse o caso, para saber o tempo que levou para chegar. Muitos aqui conheceram o Smiley e podem contar muitas coisas sobre ele. Amigo, não fazia diferença para ele – apostava em qualquer coisa o filho da puta. Quando a mulher do pastor Walker ficou doente, parecia que ia morrer, pois ficou assim muito tempo; numa manhã, dando com o pastor, o Smiley perguntou como ela estava e ele disse que ela estava melhorando – graças ao Senhor e sua infinita misericórdia – e com a benção divina, logo estará completamente sarada. E o Smiley, disse em seguida: ‘Bem, eu arrisco dois dólares e meio como ela não vai ficar’.” 

“Esse tal Smiley tinha uma égua – que os meninos apelidaram de ‘justos 15 minutos’, mas era só uma gozação, porque, você sabe, ela corria mais do que isso, – e ele costumava ganhar dinheiro com ela; bem, ela era lenta mesmo, tinha asma, diarréia, tuberculose, sei lá o que mais. Todos costumavam levar uma vantagem e ficar na frente pelo caminho, mas sempre no final da corrida a égua ficava excitada, meio desesperada, e disparava dando saltos e coices para todos os lados, levantando mais poeira do que um vendaval, e acabava sempre por passar a linha de chegada pelo menos um nariz à frente dos outros.”

“Ele tinha, também, um buldogue, pequeno, pelo qual ninguém lhe daria um centavo, parecia um vira-lata que só servia para roubar a comida dos menos avisados. Mas era só ouvir o tinir das moedas e o Smiley colocá-lo na rinha, que ele se transformava e ia direto morder as patas traseiras dos adversários e ficava agarrado ali, não mastigava, se me entende, só ficava agarrado até o dono do outro cachorro jogar a toalha, mesmo que demorasse um ano. Smiley sempre ganhou dinheiro com o cachorrinho, até o dia em que encontraram um cachorro que não tinha as pernas traseiras, amputadas por uma serra circular, e quando a briga já estava adiantada e o dinheiro casado é que se viu onde eles tinham se metido; o outro cachorro tinha tudo ao seu gosto e o cachorrinho, assustado e sem poder agir, acabou sofrendo muito com as mordidas do outro cão, que não tinha as pernas de trás. 
 
Olhou para Smiley com tristeza como a recriminá-lo por colocá-lo para lutar com um cachorro que não tinha as patas traseiras, exatamente onde sempre se agarrava tenazmente, deitou e morreu. Era um bom cachorro, Andrew Jackson era o seu nome, e ficaria famoso se tivesse vivido mais tempo, porque era gênio. Nem é preciso reforçar essa idéia, porque as lutas que fizera anteriormente demonstrava o seu talento. Sempre fico triste quando penso na última luta e como terminou.” 
 
“Bem, Smiley tinha uns cãezinhos da raça terrier para caçar ratos, galos de briga e gatos selvagens, e tantos outros animais que você não pode imaginar o que ele não tinha para competir numa aposta. Um dia ele arranjou uma rã, levou-a para casa, disse que iria treiná-la e não fez outra coisa senão ensinar aquela rã a saltar pelo seu jardim. E pode apostar que ele ensinou. Bastava dar um toque no traseiro dela e você via aquela rã rodando pelo ar, como uma panqueca, podia vê-la dar saltos mortais, girar, e cair com as quatro patas, como um gato. Também a treinou para pegar moscas, forçando que ela praticasse com tal exagero que pegava as moscas à distância, com a maior facilidade. Smiley insistia em dizer que se podia ensinar qualquer coisa para uma rã que ela aprenderia e eu acredito nisso. Meu amigo, eu vi ele colocar Daniel Webster no chão – Daniel Webster era o nome da rã – e atiçar: ‘Moscas, Daniel, moscas!’, e no mesmo instante, mal dava para ver, ela já tinha pulado para cima do balcão, engolido a mosca, e voltado para a sua posição, já coçando a cabeça com uma das patas traseiras, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo para uma rã fazer. Em lugar nenhum você podia encontrar uma rã tão simples e modesta, apesar do seu talento. Saltar num terreno plano, então, ia mais longe do que qualquer outro animal da sua espécie. Smiley apostaria todo seu dinheiro no salto da sua rã. Ele tinha muito orgulho da sua rã, e podia mesmo ter porque pessoas que haviam viajado pelo mundo estavam de acordo que jamais haviam visto outra igual.”

“Bem, Smiley deixava a rã numa pequena gaiola, onde, de quando em vez, levava à cidade para apostar. Certo dia, um sujeito – desconhecido no acampamento – viu Smiley levando a gaiola e perguntou:

“‘O que leva aí nessa gaiola?’”  

“Smiley respondeu, fingindo indiferença: ‘Podia ser um periquito ou um canário, mas não é não… é uma rã’.”

“O estranho pegou a gaiola, examinou-a com cuidado de um lado ao outro e falou: ‘Está certo, parece que é. E para que serve?’”

“‘Bem’, disse Smiley, calmamente. ‘Ela é muito boa em saltos – salta mais alto do que qualquer outra rã no Condado de Calaveras’.”

“O estranho pegou a gaiola de novo e examinou a rã novamente, depois a devolveu para Smiley, com expressão de dúvida: ‘Pelo que vejo essa rã parece igual a todas as rãs’.”

“‘Talvez você não veja,’ disse Smiley. ‘Talvez você entenda de rã, talvez não; talvez até você seja um especialista, talvez um amador. De qualquer jeito eu tenho a minha opinião e estou disposto a bancar 40 dólares que ela é capaz de saltar mais alto do que qualquer outra rã no condado de Calaveras’.”

“O estranho pensou a respeito e disse, com tristeza: ‘Bem, não sou daqui e não tenho uma rã, senão eu apostava’.

“Então Smiley propôs: ‘Tudo bem, tudo bem, você segura minha gaiola que vou arranjar uma rã para você.’ Na hora o estranho casou os seus 40 dólares e ficou esperando por Smiley.” 
 
“Sentado ali um bom tempo, o estranho começou a matutar consigo mesmo e resolveu aproveitar a chance que lhe era oferecida. Sacou a rã da gaiola apertando-a até que abrisse a boca, então recolheu à mão-cheia um punhado de chumbo de caça que enfiou pela boca adentro da rã. Em seguida colocou o animal no chão, que ali ficou estático. Enquanto isso Smiley procurava junto ao brejo uma rã, para que o estranho pudesse apostar. Finalmente conseguiu, levou-a ao estranho, dizendo: ‘Agora, se você está pronto, coloque a sua rã junto ao Daniel, com as patas alinhadas que eu vou dar o sinal. E disse: ‘Um… dois… e… já!’ Cada apostador deu o seu toque por trás da sua rã, mas, enquanto a rã do brejo dava um salto para valer, Daniel apenas levantou os ombros – assim como fazem os franceses – sem conseguir se mover. Ficou plantado como uma igreja; era como se estivesse ancorado. Isso deixou Smiley intrigado e aborrecido, mas não podia imaginar o que estava acontecendo, é claro.”

“O estranho pegou o dinheiro e foi embora feliz, fazendo um sinal de positivo com o polegar. Mais adiante se voltou: ‘Bem’ – repetiu ele. ‘Não vejo nada nessa rã que a faça melhor que as outras’.”

“Smiley coçou a cabeça, procurando uma explicação para o acontecido, olhando Daniel e resmungou: ‘Eu me pergunto o que fez esse animal desistir. Que será que deu nela? O certo é que ela realmente está com um aspecto diferente, parecendo um saco de batatas’. Quando levantou Daniel logo percebeu o excesso de peso: ‘Opa, ela deve estar pesando mais de 5 libras!’ – exclamou, enquanto virava a rã de cabeça para baixo, e viu ela arrotar espalhando um bom punhado de chumbo de caça. Entendendo o que havia acontecido, ele partiu atrás do estranho disposto a tudo, mas não conseguiu encontrá-lo…”  

Nesse momento do relato, Simon Wheeler ouviu alguém chamar seu nome lá de fora e se levantou para ver do que se tratava. Afastou-se dizendo: “Oh, amigo, fique onde está que volto num segundo.”

Mas vocês me perdoem, porque achei que as histórias que Simon me contava desse Jim Smiley nada tinha a ver com o reverendo Leônidas W. Smiley, nem me traria informações sobre ele, por isso me levantei para sair.

Na porta, Wheeler, o falante, voltava e me segurou pelo casaco, querendo continuar a contar os casos:

“Bem, esse tal Smiley tinha uma vaca caolha e sem rabo… só um coto, como uma banana…”

Mas aleguei falta de tempo, para não dizer de vontade, e não esperei para ouvir a respeito da pobre vaca e fui embora.

Mark Twain

Contos Filosóficos do Mundo Inteiro * Jean-claude Carriere



Jean-Claude Carrière compilou, por mais de dez anos, contos dos mais diferentes povos. São histórias engraçadas, inteligentes e, muitas vezes, misteriosas, mas que tocam todos os pontos da interrogação humana, aguçando a curiosidade e a inquietude. Neste livro, o leitor verá que, em uma história, é difícil discernir o verdadeiro do inventado, uma vez que, algum tempo depois, o real e o imaginário se unem.

Nome do livro: O circulo dos mentirosos / Contos filosóficos do mundo inteiro
Autor: Jean Claude Carriere
Número de páginas: 304
Formato: 15,5 x 23
ISBN: 978-8500-017-216
Editora: Ediouro 

http://www.contosfilosoficos.com.br

Alguns mini contos extraidos do livro:

A prova da mentira



Uma história coreana conta o seguinte.

Nos tempos em que o tigre ainda fumava cachimbo, um velho cego morava numa casa sem teto. No período mais inclemente do inverno, ele se vestia com roupas de linho. Ocupado em socar tabaco num cachimbo que estava sem o tubo, o cego olhava a paisagem. Na montanha à sua frente, viu árvores sem raízes e pássaros sem asas, que levavam comida para seus filhotes sem bicos. O cego viu passar correndo um cabrito-montês sem patas. Então, apanhando seu fuzil sem cano, o velho correu na direção da montanha e atirou no cabrito sem patas. Em seguida amarrou o animal morto e olhou novamente para a montanha, cuja encosta ensolarada estava coberta por uma neve negra. Ele quis cortar a relva com sua foice que tinha a lâmina cega, quando de repente surgiu uma serpente sem cabeça que mordeu a foice. Da foice mordida esguichou um jato de sangue. O velho arrancou um chumaço de algodão de sua roupa de linho, estancou o sangue que escorria da foice, cortou a relva e a colocou no lombo do cabrito morto. Seguido pelo animal, ele subiu a montanha, com pressa de cruzar o rio sem água. Mas a correnteza do riu arrastou o cabrito morto carregado de feno.
O velho cego gritou, desolado:
- Socorro! Socorro! Meu cabrito morto se afogou no rio sem água! Meu cabrito morto está morrendo!
Um surdo foi o primeiro a atender a este apelo que não se podia ouvir. Ele pediu a um doente, um homem sem pernas, que se atirasse no rio para salvar o cabrito morto que ia morrer. Neste exato momento, um mudo apareceu e gritou:
- É tudo mentira! É tudo mentira!
Então todos os outros, o velho, o cego, o surdo e o mudo, se deram conta com espanto, de que tudo isso não passava realmente de uma mentira.

***

Outro caso de pessoa errada (Espanha)

A história a seguir é de origem espanhola.

Do trigésimo andar, um homem despenca no vazio. Enquanto cai, grita:

- Santo Antonio! Santo Antonio! Me salve.

Uma mão poderosa surge das nuvens e o segura.

- Oh, obrigado santo Antonio! - Grita o homem

- Santo Antonio de onde? - Pergunta uma voz invisivel.

- Santo Antonio de Pádua!

- Ah, não sou eu. - Diz a voz.

A mão se abre e o homem se arrebenta na calçada.

***

A derradeira miséria (Arabia)

Esta história curta nos foi trazida pela tradição árabe.

Um homem muito pobre e seu jovem filho encontraram um corpo que alguns homens carregavam por terra.

- Aonde estão levando este morto? - Perguntou o garoto.

- Para algum lugar que não haja nada para comer, nem nada para beber. Algum lugar onde não exista nem teto, nem fogo, nem tapete, nem esteira.

- Então estão indo lá para casa. Respondeu o garoto.
***

O demônio sofredor

Uma história de origem desconhecida, mas que é contada um pouco por toda parte, diz que um demônio encontrou um outro demônio que rolava por terra, gritava e chorava, como se sofresse uma dor sem igual.

- Por que está sofrendo? - Perguntou o primeiro demônio.

O outro respondeu entre dois queixumes:

- Tenho um anjo dentro de mim. E ele está me atormentando. 
***

Onde Deus mora?

Um grande mestre da tradição hassídica, Yitzhak Meir, era ainda criança quando alguém lhe disse, brincando:

- Eu lhe dou um florim se você disser onde Deus mora.

- E eu - respondeu a criança - lhe dou dois florins se me disser onde ele não mora. 
***

O que é a profundidade?

Um Koan - relato curto com objetivo de instruir ou estimular a meditação - atribuido a Tchao-Tchan conta o seguinte:

Um discipulo pergunta ao mestre qual a profundidade do rio Zen.

- Três dedinhos - responde-lhe o mestre.

- Então - pergunta o discipulo - , quem pode nadar nesse rio?

- A montanha.
***

Uma boa proteção

Nasreddin Hodja certo dia cercava sua casa com miolos de pão. Um homem que passava parou e lhe perguntou a razão dessa prática inusitada.

- É para me proteger dos tigres - respondeu Nasreddin.

- Mas não há tigres aqui!

- Sim - disse Nasreddin - Você está vendo que funciona. 
***

A lição do pássaro

Krishnamurti contou em A chama da atenção:

Um mestre espiritual tinha vários discipulos e, todas as manhãs, ele lhes falava sobre a natureza da bondade, a natureza do amor. Certa manhã, quando ia começar a falar, um pássaro pousa no parapeito da janela e começa a cantar. O pássaro canta por um momento, depois desaparece. O mestre se levanta e diz: " A palestra de hoje terminou".


O começo de uma coleção

A pretensão será fazer uma seleção do que existe de melhor na arte do Conto. Não quero ferir nenhum direito autoral, quero somente encantar os leitores e estimular o conhecimento deste universo fantástico das pequenas histórias. Qualquer problema com a exposição do conto, por favor contate-me nos comentários. Abraços!
Sérgio Ferrari.